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Underground no terraço

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Fachada d’A Bolha, no terraço da fábrica da Bhering

Duas personagens quase idênticas se perdem numa floresta fria. Chegam a um povoado onde há uma celebração agrícola em que as flores de uma grande árvore são espalhadas e a árvore queimada. A época é incerta; talvez medieval. A dupla percorre caminhos perdidos no sonho e encontra uma bizarra e monstruosa criatura. A narrativa, em looping, mais sugere do que mostra – ainda que mostre o horror. Esta é a graphic novel A celebração, de Rui Tenreiro, artista gráfico moçambicano que vive na Suécia, cujo traço delicado ambienta narrativas misteriosas.

Rachel Gontijo, a editora / tradutora / contadora / contínua d’A Bolha

Tenreiro é um dos achados d’A Bolha Editora, da escritora e filósofa mineira Rachel Gontijo. Após viver quase dez anos entre Paris e Chicago, Rachel decidiu se estabelecer no Rio de Janeiro para trazer ao Brasil escritores de vanguarda e ao mesmo tempo usar a editora como plataforma para a livraria mais insólita do país. A Bolha paira no terraço da fábrica desativada da Bhering, onde também funcionam ateliês de artistas como Barrão, no Santo Cristo, um dos mais antigos bairros cariocas – do escritório de Rachel se tem uma vista deslumbrante para o porto.

Sempre bem-cuidados, outros intrigantes títulos editados por Rachel – que, única funcionária, faz tudo em seu negócio, até colocar os exemplares no correio – são Incubação, de Banu Khapil (trad. Daniel Pellizzari), Seu corpo figurado, de Douglas Martin (trad. Daniel Galera) e Je Nathanaël, de Nathanaël (trad. Thiago Gomide). Rachel também quer fazer o caminho contrário, levando autores brasileiros de vanguarda pra fora do Bananão: em convênio com a Nightboat Books, A Bolha coordenou traduções de Hilda Hilst ao inglês – começou com The Obscene Madame D, e prosseguirá com Fluxo-Floema e Cartas de um sedutor. Editora e livros estranhos no nosso certinho mundo editorial, a serem acompanhados com atenção – e inquietação.

UPDATE: Tanto A Bolha quanto mais de 50 artistas que têm ateliês instalados na antiga fábrica de doces Bhering podem ser despejados do edifício em 30 dias: o prédio foi leiloado e arrematado por uma incorporadora imobiliária – e corre o risco de virar um shopping center.

Apagar das luzes para a editora/livraria mais bacana do Rio?



Vila-Matas, o maníaco obsessivo

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Vila-Matas tinha um ar de Dylan em 1974

Resenha de Ar de Dylan, de Enrique Vila-Matas, para o Guia da Folha LDF de agosto

A arte é também escapar do que acreditam que você é ou do que esperam de você“, afirma, um tanto dúbio, o narrador de Ar de Dylan, novo romance do espanhol Enrique Vila-Matas. Nada mais falso: pela profissão de fé no meta-literário, seu livro parece mais um no longo continuum narrativo do barcelonês, um dos mais festejados autores europeus contemporâneos, que já abarca cerca de trinta livros. Salvo por romances “lineares” como A viagem vertical, a sensação de mais do mesmo (ou, em trocadilho vilamatiano, “menos do mesmo”) é obtida pelo mote do livro: o fracasso.

A ideia pós-moderna de literatura em branco, em pânico, em crise, em suspensão ou em impasse flutua por livros como Bartleby & Cia, Suicídios exemplares, O mal de Montano, Doutor Pasavento, Dublinesca. Seus personagens são escritores que param de escrever e artistas cuja arte principal é desaparecer da arte. São intelectuais obcecados por uma imagem, uma frase, uma ideia, uma sensação, uma memória – dando à realidade a consistência de geleia (que horror conjugar uma frase com as palavras geleia e ideia), de tão autoconscientes da farsa que é a literatura. Autores, livros, cenas, sentenças de gente tão díspare quanto Rulfo, Kafka, Dylan (o Bob) estruturam a narrativa – causando ao leitor a impressão, ao final da maioria de seus livros, de que ele não leu um romance: antes presenciou um dança ou uma luta entre os livros de uma infinita biblioteca.

Um escritor que tem uma obra razoavelmente parecida em toda a sua extensão, exausto de si mesmo, resolve escrever um último livro para dar fim a esta tarefa que agora lhe parece inútil. É barcelonês, viaja pelo mundo e esteve até em São Paulo, onde passeou pelo Mercado Municipal com Emilio Fraia (escritor e editor de Vila-Matas na “vida real”). Participa de um congresso literário sobre o fracasso, onde conhece Vilnius Lancastre, filho de um escritor amigo, Juan Lancastre – cuja principal característica era ser um escritor camaleão, mudando a cada livro. Vilnius, que é igualzinho a Dylan na época de sua metamorfose do folk para o rock, sofre de uma terrível angústia de influência do pai, e, desde que este morreu, sente que seu cérebro está sendo “contaminado” pelas memórias de Juan. Ao lado dessa neurose, o Little Dylan, ex-publicitário de sucesso e cineasta falido, é obcecado pela frase “Quando escurece, precisamos sempre de alguém“, dita no filme Três camaradas, de Frank Borzage, que teve entre seus roteiristas ninguém menos que Scott Fitzgerald, e, de tanto odiar o pai, envolve-se com a amante dele, Débora… Zimmerman (sobrenome real de Dylan).

O narrador anônimo, fascinado pela deambulação aleatória do casal, que funda uma “sociedade infraleve” (cuja arte é não fazer nada, para conservar o “esquivo ar de Dylan”), resolve ajudá-los a escrever as memórias apócrifas do Lancastre pai, uma vez que as reais teriam sido incineradas pela tirânica mãe de Vilnius, e fazer de seu último livro uma exaltação à literatura como um “drama da sucessão” – trazendo ao romance a sombra de Shakespeare e seu mais famoso órfão, Hamlet.

Quanto existe de real na realidade?“, pergunta V-M a dada altura. “A realidade tem um caráter circular e estrutura de pesadelo“, responderá, mais à frente. Entrelaçando refrões obsessivos que vão e voltam como uma longa canção de erros e acasos, V-M criou um romance que, tal como sua própria obra, caminha para nunca sair do lugar. Exausto e tonto com tantas rasteiras em seu mundinho verossímil, o próprio leitor é arrastado a este pesadelo e, ao fim, se perguntará se realmente existe – ou o quanto de sua própria matéria é formado de ar.


O intelectual é um urubu

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Padre Daniel Lima, no traço de Andrés Sandoval


Um bolo de rolo com o premiado padre-poeta Daniel Lima, morto em abril depois de passar 95 anos zombando da glória e da Moça Caetana. Esquina publicada na Piauí de maio

O que faço é uma bosta“, diz o velhinho, arregalando os olhos, erguendo de leve o pescoço ao tentar se elevar da poltrona verde onde afunda, pés descalços estendidos no pufe, em um simpático apartamento no bairro da Torre, Recife. Sua voz é trêmula, baixa e suave: ele acaba de retornar do hospital, onde se recuperava de pneumonia. “Logo de manhã você não sente a própria bosta? É a vida! Fiz muita bosta nessa vida. E não ria, não: porque fiz foi bosta da boa. Olhe, você tem a minha bênção pra escrever bosta, sabe?” O velhinho veste uma camisa listrada clara e óculos de lentes fundo-de-garrafa; o perpétuo olhar espantado e o sorriso aberto lhe dão um ar de tartaruga ninja bebê. A bosta a que se refere é seu livro Poemas, editado no fim de 2011, premiado pela Biblioteca Nacional. Era o primeiro livro que publicava em 95 anos.

Tem bolo de rolo lá em São Paulo?“, pergunta Daniel Lima, padre, professor de teologia, latim e filosofia, oferecendo uma finíssima fatia do mais famoso quitute pernambucano (depois das empadinhas de Garanhuns). Seu olhar arregalado é intenso, mas sua voz é fraca, escavada por uma longa tosse. Assim, ele mais escrutina o repórter do que desfia histórias – quem o faz são as fiéis companheiras, a escritora Luzilá Gonçalves e a bibliotecária Célia Veloso. Foram elas as responsáveis pela publicação de Poemas, espécie de contrabando: até seus noventa anos, Lima era notório por fazer livros cujo único exemplar emprestava a um amigo, pedindo-o de volta depois de um ano. Nunca quis publicá-los, por achar que era vaidade de intelectual, coisa que o horroriza.

O intelectual é um urubu/ que se julga vestido/ mas que está nu/ com uma pena de pavão/ enfiada/ no cu“, diz um de seus mais famosos poemas, conhecido de cor pelas centenas de alunos que passaram pelas anárquicas aulas na Universidade Federal. Célia datilografou os livros – 13 de filosofia, 14 de poesia, títulos como O cocô de Herodes, Deus de anarquia, Cordel quase modernoso, Instruções para Dom Quixote, Da teologia ao rol de roupa, Peregrinação divertida.

Luzilá publicou a seleta em edição caprichada, sem avisar o padre. A consistência de sua poesia metafísica, de linguagem direta, despida de pompa, alimentada por humor leve e exaltação à vida, impressionou o júri, formado por medalhões como Ivo Barroso e Alexei Bueno. O prêmio não impressionou Daniel Lima: ele chamou Luzilá de “traidora” e, no dia do lançamento, fechou a cara pra todo jornalista que o procurava. Contudo, agora olha o livro como um menino mira o brinquedo favorito: “Está cheio de erros. Não deviam ter publicado“, chia.

Fora os escritos datilografados zelosamente por Célia, na casa humilde que ainda mantém há dezenas de outros inéditos. Neles, onipresente são o tema do repúdio à vaidade e o flerte com a escatologia: “Deixa, Senhor, que eu blasfeme/ na danação desta hora./ Preciso ser maldito/ para sentir-me salvo.” Ou pequenas epifanias surrealistas: “Engarrafar o luar e sair por aí viajando/ de camisa listrada, sossega leão, sandálias japonesas,/ ai! meu louco sonho!/ A vida é essa mistura de flores e toucinho./ Estou bêbado de tanta leitura./ Quando voltarei de novo a ser gente?/ Queria ser agora apenas daniel (assim do com d pequeno, bem pequeno).

O miúdo padre é uma lenda. Educou gerações de pernambucanos ilustres; sua turma de amigos contava com Ariano Suassuna, Jommard Muniz de Brito, Paulo Freire, João Alexandre Barbosa e dom Hélder Câmara, que o chamava de “meu padre meio doido e meio gênio“. Genioso, Daniel Lima nunca teve paróquia, odiava freiras e beatas e era notório por ter soltado os pássaros raros do viveiro do padre Sidrônio, em Olinda, um escândalo. Tinha fundado um jornal aliado das Ligas Camponesas na região da zona da mata, onde nasceu (era natural de Timbaúba); virou padre numa “bunda-canástica“, explica, em pernambuquês – assim, de repente, sem explicação. Perguntado se praticava “socialismo cristão“, revidava: “Socialismo é socialismo; socialismo cristão é safadeza de padre“.

Tinha hábitos incomuns, como telefonar aos amigos de madrugada para discorrer sobre molho inglês, usar peruca para sair incógnito na rua, fritar ovo com óleo de peroba e cozinhar bife no ferro de passar. Jogava giz nos alunos indisciplinados, fingia-se de doente para pegar carona com ambulância e, certa vez, para provar que estava à beira da morte para conseguir uma licença da universidade, pediu emprestadas as fezes e a urina de um mendigo para forjar os exames. “Eu fazia isso?”, ri e tosse o padre, ante mais uma anedota contada por Célia e Luzilá.

Tinha também costumes perigosos, como soltar bolinha de gude na rua pra fazer derrapar os cavalos dos soldados do exército, esconder estudantes perseguidos pela ditadura e criticar abertamente os militares em suas aulas na Federal. Detido para interrogatório, passou um dia todo dando aulas de estética a um sargento. Abusava da amizade com o general Antonio Carlos Muricy, cujo casamento havia oficiado, e lhe pedia que soltasse este ou aquele militante. Porém, suas atividades incomodavam – e não se tratava só da defesa apaixonada que fazia da teoria da evolução das espécies na aula de teologia. Um amigo próximo, o padre Antonio Henrique Pereira Neto, foi mutilado, castrado e assassinado pelo Comando de Caça aos Comunistas, em 28 de maio de 1969. No bolso de Neto havia uma lista de nomes: o primeiro era o de Daniel Lima. “Me disseram: fuja!“, ele lembra. “Armei na cama um corpo feito de travesseiro, pus uma cabeça de coco, viajei para Natal. Uma semana depois, voltei, o telhado estava quebrado e a cama toda atravessada por balas. Não sobrou nada do coco“, ri e tosse Daniel Lima.

Quando o cabra começa a falar muito nele mesmo, fede. Quase todos os intelectuais são assim: me dá abuso. E tem gente que veste casaca de escritor e até fede que nem escritor, mas não é escritor“, denuncia o padre, explicando por que tenta convencer Luzilá a não publicar mais um livro seu. O aplicado leitor de Drummond, Thomas Mann e Cervantes acredita que não publicar seus próprios poemas foi “um ato enviesado de vaidade” – diz, depois de uma comprida sessão de tosse. “Ocultar a própria obra é um ato de vaidade. Se não fosse, eu não teria escrito nada. Foi o meu jeito de brilhar sem dar na vista“, arregala-se. Mesmo assim, logo deve sair a sua seleta de poemas fúnebres, o Sonetos quase sidos, com forte influência de Augusto dos Anjos: “Quando morreres ou te matares,/ come-te a ti mesmo com batatas/ e ervilhas (e um pouco de molho inglês)./ Comemora-te, ó imortal mortal:/ a tua morte bem merece/ o que a tua vida não valeu.

O flerte com o tema da morte o tornaria imortal? Se sim, o truque durou até o último 14 de abril, quando a Moça Caetana levou para sempre a verve diabólica e o sorriso infantil do religioso anarquista. Para lembrar aquela tarde pontuada a café, risadas e bolo de rolo, ocorrida somente um mês antes, busquei meu exemplar do Poemas e achei a dedicatória do padre: “Este livro era meu, agora é seu, depois será da lixaria. Com a amizade eterna do amigo Daniel Lima“. Amém.


Metamorfoses de Siba

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Siba guitarreando no Carnaval recifense deste ano

Com Avante, Siba, ex-líder da Fuloresta do Samba e do Mestre Ambrósio deixa o universo do maracatu rural pernambucano para reinventar a carreira, em um disco que mistura sua lírica sofisticada com rock, ciranda e congotronics. Perfil para a Bravo! de março

A brisa, por ser carinhosa, é quem mais tem castigado.” A frase, por ser capciosa, é das que mais tem chamado a atenção no novo álbum de Siba, Avante. O repórter leu no verso da canção “Brisa” uma metáfora da condição de todo artista inquieto: de como o conforto pode colocar em risco a evolução do criador. Siba ri: “Rapaz… tu já vivesse o pior dentro do melhor? Era só isso…“, sugere o recifense de 44 anos, dando a entender que a frase somente reflete os paradoxos do amor.

Mas Siba não excluiu esta leitura cabeça, afinal, o disco todo é uma auto-análise da (des)construção de sua identidade. A história de seu aperreio como artista – que o arrancou de um lugar estável para jogá-lo no rodamoinho da página em branco. A história de um artista que já passou por duas metamorfoses.

Faz seis anos que Siba gravou o aplaudido Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar, indicado ao Grammy. À frente da Fuloresta do Samba, banda formada por músicos de Nazaré da Mata, norte da Zona da Mata pernambucana, Siba chegava ao ápice de seu projeto de experenciar a fonte das tradições: maracatu rural, coco, ciranda, samba, frevo. “Descobri que aquela cena cultural era mais inovadora que o mundo mainstream, de show e disco, em que a música é separada do dia-a-dia do homem“, afirma Siba enquanto toma um suco de tangerina num restaurante da Vila Madalena, São Paulo, cidade em que acaba de ancorar. Ele havia se fixado em Nazaré em 2002, logo após o fim do Mestre Ambrósio – grupo que foi, no tratamento rock’n'roll de forró, maracatu e cavalo-marinho, um dos pilares do manguebeat, ao lado do mundo livre s/a de Fred Zero Quatro e da Nação Zumbi de Chico Science.

Cabelo e barba crescidos, roupas urbanas e chapéu sumido, no visual Siba também parece mudado. Se no Mestre Ambrósio, surgido em 1992, ele se destacava por mixar na mesma magra figura um guitarrista, um rabequeiro e um cantador, na Fuloresta seu projeto havia se radicalizado – e o ex-metaleiro fã de Motörhead incorporava a persona de um tiozinho elegante e ladino, de chapéu e bigodinho, rápido feito o diabo na arte de improvisar rimas. Viveu dez anos nas sambadas da mata, privando da amizade de lendas como Biu Roque. Nesse tempo, dividia-se em quatro: vivia em Nazaré, mas o escritório ficava na casa da mãe, no Recife, muitos parceiros musicais estavam em São Paulo – onde morou na época do Mestre Ambrósio – e, há cinco anos, o filho Vicente nascia em São Luís (MA), onde até hoje mora com a mãe. Então bateu a crise dos quarenta. E o bloqueio.

Não vejo nada que não tenha desabado/ nem mesmo entendo como estou de pé/ olhando um outro num espelho pendurado/ que reconheço mas não sei quem é“, eis a estrofe da canção de abertura, “Preparando o salto”. Ao tratar da crise, Siba alterna alexandrinos e decassílabos de rimas ricas e ecos internos, coisa rara de se topar na música pop brasileira. A sofisticada letra passeia sobre um rock suave, cujo arranjo intrinca o vibrafone com ares de jazz, a tuba típica das orquestras de frevo fazendo papel de baixo e a guitarra de fraseado limpo, suja por leve efeito, que remete à música do Congo. Parece complicado, mas soa bem simples.

Quando saí de Nazaré, me questionei: que tipo de artista sou eu? Que tipo de música eu quero?“, Siba recorda. Dar conta de um grupo de dez integrantes como a Fuloresta era inviável e o projeto parecia ter chegado no limite. Precisava de uma banda enxuta e de uma música que atendesse a outras sedes, como a descoberta da música congolesa – em especial o congotronics, som dos subúrbios de Kinshasa, e a discografia de um nome importante da África: Franco. “Ele me iluminou, me tirou do bloqueio. Porque pega a música cubana, desconstrói e transforma numa coisa rude, tocando uma guitarra inusual“, conta.

Siba tinha largado a guitarra há 20 anos para abraçar a rabeca, despezada neste Avante – e ele é autor da tese A rabeca na zona da mata norte de Pernambuco, escrita quando estudava música na Universidade Federal, além de ter tocado com o mitológico rabequeiro Mestre Salu. Abandonar totalmente um instrumento em que é PhD foi tão radical quanto ter abraçado a rabeca no início dos anos 90, época em que dedilhava uma Gibson SG, a favorita de Angus Young, do AC/DC. “Amigos roqueiros e colegas de universidade gozavam de meu interesse por música regional: pra eles, era o lixo do lixo. Em 1990, montar banda com rabeca e cantar maracatu na mata foi uma atitude punk“, afirma.

O interesse pela música tradicional vinha de longe: fã de cantoria, o pai, egresso de Olho d’Água de Dentro, agreste, levava Sibinha a tiracolo nas rodas e vivia assoviando as canções que não sabia tocar na viola. O instrumento está em outro experimento de Siba, o álbum Violas de Bronze, de 2009, em que toca rabeca com o violeiro mineiro Roberto Corrêa. O culpado por fazer Siba empunhar de novo uma Fender foi o guitar hero Fernando Catatau, o cearense líder da Cidadão Instigado e produtor de Iê Iê Iê, de Arnaldo Antunes. “Catatau me ensinou que falar de si é como falar de todo mundo“, diz, sobre o impacto do “Barão”, como o chama, em sua música. O guitarrista é responsável por dar liga aos elementos tão díspares de Avante, que conta com o tubista pernambucano Léo Gervázio e o baterista paulista Samuca Fraga, além de vibrafone e teclados do talentoso mineiro Antônio Loureiro.

Impressiona como a infinidade de referências não descose o resultado. “Qasida”, por exemplo, deve o nome a um tema clássico da lírica árabe: o poeta que retorna ao acampamento e o encontra destruído – tópico pescado nos Poemas Suspensos, de Alberto Mussa. A letra, porém, baseia-se no martelo nordestino, estrofes de dez linhas de decassílabos, e a canção finaliza psicodélica na guitarra de Catatau. Apesar do que pode sugerir a fina figura de Siba, nem tudo é sério em sua obra. Há passeios pelo rock brega, como em “Ariana”, que trata de amores excusos, e pelo frevo de cabaré, como na engraçadísima “A bagaceira”, sobre um sujeito perdido no Carnaval.

Tratando de monstros e fantasias infantis, o álbum finaliza com a doce “Bravura e brilho”, dedicada à sua razão de ser (ou não ser): o filho Vicente, presente na capa. Siba diz que nina o filho lendo trechos da Odisséia. “Ulisses foi o primeiro herói dele“, orgulha-se Sérgio Roberto Veloso de Oliveira. Siba é apelido de apelido: vem de “sibito baleado”, gíria pernambucana para um cabra magro, parecido a um sibito – passarinho que solta um pio ossudo, tipo um assovio de vento. Lembrando o assovio do pai, que lhe presenteou a guitarra que também está na capa do disco. Como as idas e voltas em sua vida comprovam, na obra deste artista múltiplo até as metamorfoses fazem sentido.


Que maravilha poder te alcançar

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Que maravilha poder te alcançar via skype, estava com saudade das nossas conversas, outro dia vi uma cena que precisava te contar. Tinha ido jantar sozinha, naquele bistrô que a gente costumava ir, e como sempre fico de olho nas outras mesas, imaginando como são as vidas das outras pessoas, no que trabalham, se são felizes, se assistem Chaves ou Seinfeld, se andam de SUV ou de bicicleta, se escolhem Mac ou Android, se fazem sexo loucamente ou se já são parte daquele condomínio de gente que só finge que faz mas no fundo tem nojinho. Aí de repente me peguei sacando esse casal que tinha acabado de chegar: muito elegantes os dois, o cara numa jaqueta de couro marrom de motoqueiro, a garota um tubinho preto e umas meias cor de fúcsia (fúcsia, adoro essa palavra) e o cabelo preso no alto da cabeça, os dois muito bonitos, magros, lógico, com aquela cara de quem já assistiu todos os filmes que estão em cartaz na cidade. Cada um deles falava com alguém no celular, os dois muito animados em seus papos. Até que veio o garçom e meio que eles tiveram de desligar, parece que não gostaram muito disso, o garçom os forçava a ter de sair das bolhas, ou então fosse somente uma impressão minha, fato é que eles acabaram pedindo o que o garçom lhes sugeriu, meio que para dispensá-lo, e pouco depois chegou uma garrafa de vinho. Quando o garçom se afastou e eles se preparavam para o brinde, o cara tirou do bolso de dentro da jaqueta uma caixinha de veludo preto pequena, e estendeu em direção da moça, aí me peguei emocionada, porque, lógico, só poderia ser uma coisa. A garota se deslumbrou: era uma aliança de ouro branco, bem grossa, com uma espécie de linha sinuosa em ouro velho no interior do anel, e a moça logo botou o anel no dedo e ficou olhando pra ele de ângulos variados, estendeu a mão, levantou e deu um beijão no cara, agora sim eles pareciam bem felizes. A moça teve uma idéia: fotografar o anel? Claro que sim, e daí ela fotografou, e ficou lá mexendo no celular dela um tempo, parecia que estava escrevendo algumas coisas, e o cara também fotografou ela fotografando o anel, e ela fotografou ele e ele fotografou ela, e se fotografaram juntos com o anel em primeiro plano e quase que eu fotografei eles da minha mesa de tão lindos e felizes que estavam. Ficaram um tempo encafifados com os textos que metiam nos celulares, até que chegou a comida. Mas aí os celulares de cada um dos dois começou a tocar sem parar. Eram pessoas que, imagino, devem ter visto as fotos deles na internet, em alguma rede social, e ligavam para dar os parabéns, e aí eles começaram a comer enquanto recebiam os parabéns, obrigado, obrigado, era só o que eu via seus lábios se mexerem, comiam e agradeciam, também tive vontade de agradecer por ver aquela cena, porque eu estava entendendo alguma coisa misteriosa sobre a vida e o amor e o casamento e a nossa época, você está me entendendo, ei, você está me escutando, será que dá pra parar de mexer só um pouquinho nesse treco enquanto eu falo?

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Conto publicado na edição 7 da revista seLecT


Fausto e a Favelost

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Entre as belas Bianca Jhordão e Carol Teixeira, Fausto Fawcett em seu show Favelost, em outubro/2012, SP

Maior rap-rapsodo do Rio de Janeiro, Fausto Fawcett lança novo romance de ficção científica. Resenha para o Valor

Eu não faço ficção científica. Eu só dei uma exageradinha na nossa realidade perturbada, ou nas nossas realidades conturbadas“, brinca Fausto Fawcett à saída de seu show no Espaço Caneca, em São Paulo para divulgar o lançamento de Favelost. Com o quarto romance-rapsódia-rap, o mitológico Cervantes do Cervantes (famoso boteco de Copacabana) apresenta uma reconfiguração ao seu jeito peculiar de ver o mundo: colocando-o sob uma lente de aumento no eixo espaço-tempo. É ficção científica, sim, se nos basearmos na clássica definição do gênero como exploração das interações entre humano e pós-humano – a tecnologia e seus frutos bastardos. E “carne é máquina” é um dos refrões do livro e do show.

Mas, assim como o autor de “Kátia Flávia, a Godiva do Irajá” era um corpo estranho na música pop dos anos 80, com seu canto-falado cheio de metáforas e adjetivos bizarros e apresentações povoadas por louraças belzebus, sua literatura também ainda não foi decodificada nem pela ficção científica dita “de raiz” nem pela chamada literatura “mainstream”, essa que ganha prêmios e manda autores para feiras literárias pelo mundo. Favelost é a grande conurbação criada pelas cidades-satélites de Rio de Janeiro e São Paulo, onde vivem o carioca Júpiter Alighieri e a paulista Eminência Paula, ambos capatazes de Intensidade Vital, “firma que inocula chips assassinos em quem sai pra trabalhar“.

Nesse hiperlugar, que não parece muito distante de hoje, mas é sexualmente amplificado por Fawcett, “a manipulação da matéria virou uma espécie de alquimia prêt-à-porter, transmutação vulgarizada, sem os charmes dos processos de individuação (…) e a humanidade, que já foi Teocêntrica, agora é agressivamente Tecnocêntrica“. A hipercidade é sacudida por vastas alucinações coletivas, como as monções musicais, “que arrebatam o espaço aéreo de Favelost como gafanhotos fonográficos, chuvas de pistas sonoras melódicas, ritmadas, harmonizadas“. A metáfora é uma das chaves para a compreensão da literatura de Fawcett: um texto fortemente ritmado, rimado, oralizante, pensado para ser falado no palco – onde aliás funciona muito bem. Daí que Favelost lembra mais uma epopeia medieval que um texto pós-moderno; para falar do futuro, Fawcett bebe pesado no passado das canções de gesta. E, quando se fala em passado, lembra-se que é difícil divisar uma tradição da ficção científica na literatura brasileira. Fausto Fawcett seria um alienígena total no cânone? E afinal, por que quase não se lê nem se faz ficção científica no Brasil?

Tupinipunk

O escasso incentivo à ciência no Brasil, e a própria falta de uma cultura científica, sem dúvida, têm sua parcela de culpa na ausência da FC do debate literário“, diz Adriano Fromer Piazzi, editor da Aleph, que publica mestres do gênero como Philip K. Dick, Isaac Asimov e Ray Bradbury. “Mas, na minha opinião, o principal motivo é a existência de um preconceito pedagógico.” Nisso é ecoado pelo escritor Roberto Causo, especialista em FC: “A FC é uma literatura imaginativa, que soa inconsequente a quem adotou a leitura utilitarista que aprendemos nas escola, e soa como coisa de gringo: eles é que agitam a bandeira da inovação tecnológica. Temos mentalidade de consumidor“, detona o autor de Selva Brasil.

Isso está mudando, conforme o escritor e poeta Bráulio Tavares, autor de A espinha dorsal da memória: “A FC brasileira vive hoje o seu momento mais efervescente e dinâmico, com grande número de editoras e de novos autores“, afirma. Ecoa-o Luiz Bras, autor de Sozinho no deserto extremo. “Nunca se publicou tanto FC brasileira como nos últimos dez anos, uma produção já estudada na pós-graduação das faculdades de Letras“, informa.

Pouco conhecida, há, sim, ainda que rara, uma tradição de FC no Brasil. “Temos uma linhagem subterrânea“, diz Bras. “Não por falta de autores, mas por falta de leitores e grandes editores que invistam no gênero. Meus autores prediletos são André Carneiro (Confissões do inexplicável), Fábio Fernandes (Os dias da peste), Guilherme Kujawski (Piritas siderais) e Cristina Lasaitis (Fábulas do tempo e da eternidade)“. Causo aponta que mesmo a ficção literária tem excelentes exemplos de FC: “O brasileiro escreve FC desde o século XIX, então temos tradição, sim. A maior parte dela é composta, paradoxalmente, por autores de ficção literária que se meteram no gênero, como Não verás país nenhum, de Loyola BrandãoSilicone XXI, de Alfredo Sirkis, e A ilha, de Flávio Carneiro“, enumera.

Nesse ambiente, a literatura de Fausto Fawcett desponta por ser uma voz única. “O romance Santa Clara Poltergeist e seus contos em Instinto Básico são exemplos radicais daquilo que chamei de tupinipunk, um tipo bem brasuca de cyberpunk que se apóia menos em ciência e tecnologia e mais em referências da antropofagia modernista e numa atitude jocosa e satírica“, lê Roberto Causo. Braulio Tavares concorda: “Embora sua temática se relacione a várias correntes da FC contemporânea, o leitor percebe que se trata se um autor cujo primeiro compromisso é com a literatura, com a palavra, com a escrita, e não com os regulamentos de gênero. Muitos autores de FC deixam de escrever isso ou aquilo porque acham que ‘isto não se encaixa no gênero’. E existe sempre uma perda estética no momento em que o gênero é mais importante que a obra individual“, releva.

O escritor André de Leones, autor de Dentes negros, uma FC que destoa de sua ficção mais realista, também acha que o caminho é pela experimentação da linguagem. “Acho que há poucos leitores de ficção científica no Brasil porque esse tipo de literatura sempre foi rotulado como algo ‘menor;’, o que é uma bobagem tremenda. Rola um preconceito mesmo, como se leitores sérios não devessem perder tempo com esse tipo de coisa.” Nesse sentido, a ficção do Fausto será sempre um corpo estranho em qualquer literatura. “A mistura que ele faz de cibernética, informática, neuropróteses, realidade virtual, sincretismo religioso, sexo e desordem social é tipicamente brasileira, ou seja: delirante“, interpreta Luiz Bras.

Mais delírio, menos consciência – ou mais consciência, com menos sisudez: o caminho do humor, do groove, da palavra, pode ser um sentido que Fausto Fawcett aponta para o futuro da ficção científica brasileira. Só nos resta a lembrar que num país que se pretende player mundial não há tempo a perder para o bonde do futuro.


Desentranhado de uma entrevista de um mito pop

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Composição musical tem a ver com melodia e ritmo
e depois disso vale tudo
A transfiguração me arrastou para fora do caos
e voei acima dele

O velho vai embora e o novo entra sem fronteira definida
não existe fronteira definida entre o dia e a noite
é como mágica
é necessário se conectar a isso
a coisa funciona assim desde sempre

Eu só sou igual a outra pessoa que foi transfigurada

Não podemos mudar o presente nem o futuro
só o passado
e fazemos isso o tempo todo

Quanto mais cedo você souber da morte, melhor para você
porque a morte é o único tema que importa
você está fazendo perguntas a uma pessoa que morreu há muito tempo

Pessoas tentaram me deter a cada centímetro do caminho
Todo mundo enfrenta algum tipo de batalha interna
Há muitas distrações para as pessoas
então é provável que você nunca encontre o seu eu verdadeiro
Muita gente não encontra
algumas pessoas nunca chegam a se desenvolver
acontece muito
nós todos as vemos nas ruas
têm uma placa pendurada no pescoço
Tudo o que as pessoas dizem sobre mim estão dizendo sobre elas mesmas
Fodam-se
vou enterrar todos eles

Quem pode dizer que eu realmente tenho qualquer fé de algum tipo?
Por que as pessoas têm de ficar loucas quando falam sobre mim?
Será que eu deveria ser um artista incompreendido que vive num sótão?
E que diferença isso faz?
É só um filme

Se somos responsáveis por nós mesmos
podemos ser responsáveis por outros também
mas precisamos nos conhecer primeiro

Eu só sou igual a outra pessoa que foi transfigurada

Quando você coloca sua vida na reta por alguém
isso é amor
mas você só vai saber quando o momento chegar


O último concerto pop

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Esse lugar vai acabar
por causa do progresso inexorável da cidade
o progresso vai acabar com a experiência de assistir a um show
o progresso vai acabar com a experiência
o progresso é o work in progress sem o in
na plateia ninguém acende cigarros baseados beijos
acendem-se flashes iphones ipads
a experiência precisa ser interagida registrada publicada
ou não existe
esse mundo está morrendo
shows serão videogames
o artista era um xamã
agora é nosso avatar
a solidão do servente surdo no banheiro da casa de shows que vai acabar
a solidão do cara que assiste sozinho ao show com vergonha de dançar
a solidão do xamã no palco
a solidão impostada para a solidão da menina que assiste
e que canta com o xamã que quer ser uma pessoa comum
mas o xamã não quer ser um ídolo pop nem uma pessoa comum
o xamã é um homem morto
e só quer ser William Blake
aquele que se cola à felicidade destrói a vida alada
mas se beijar a alegria enquanto voa
vive na eternidade de um nascer do sol
o show transporta a menina para fora
e também para o ontem da própria massa comum de que participa
a solidão de quem assiste a um show de uma banda que nunca ouviu
a solidão de quem sente saudade do que jamais conheceu
a solidão de quem não entende a massa comum ao redor
a solidão de quem não ouviu a música
trancado no quarto abraçado ao travesseiro
a última banda pop toca sua última música
a última súplica do xamã à gritaria às palmas ao caraoquê que nos une
a última apresentação dos integrantes da banda pop
o último falso final
quando a banda volta ao bis é o fim da morte
vocês não precisam acordar cedo pergunta o xamã
esta casa será demolida para virar um estacionamento
os automóveis já estão vagos e prontos para os shows de amanhã
o pop morre em bis
o pop morre em loop
compartilhe isso plis



V.I.S.H.N.U. 12-12-12.

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Te espero nesta quarta-feira para o lançamento da primeira graphic novel que roteirizei, V.I.S.H.N.U., parceria com o argumentista Eric Acher e o artista Fabio Cobiaco, publicada pela Companhia das Letras. No Espaço Revista Cult, rua Inácio Pereira da Rocha, 400, Vila Madalena, a partir das 19h. Ou a partir das 23h, na Mercearia S.Pedro, rua Rodésia 34, também na Vila. O livro já está em pré-venda aqui.


Trinta horas no Galeão

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Não é essa coisa linda que você vê logo que chega ao Rio

Não é essa coisa linda que você vê logo que chega ao Rio

A pedido da revista 2016, passei três dias inteiros no Aeroporto Internacional Tom Jobim, a porta de entrada para as Olimpíadas. Acompanhe minhas impressões

O Galeão está mais abandonado do que o navio pirata de Jack Sparrow. Tome cuidado com as almas penadas“, comentou comigo o fotógrafo JR Duran quando disse a ele que uma revista havia me convidado para passar três dias no Aeroporto Internacional Tom Jobim. O catalão radicado em São Paulo sabe do que está falando: às vezes viaja três vezes na mesma semana, pelo Brasil e exterior, e já preencheu seis passaportes. Mas não é preciso ser um expert em aeroportos para sacar que uma das principais portas de entrada para o Brasil é um dos aeroportos mais feios, desgraciosos e desconfortáveis do mundo.

Chego ao Galeão na manhã de uma segundona brava, direto de Congonhas. De cara, adentrando o Terminal 2, uma constatação. Embora construído com materiais semelhantes aos de Cumbica, Galeão leva uma vantagem em relação ao aeroporto mais medíocre do planeta: é mais claro. Mas, espere, não muito. O granito cinza reina no chão em quadriláteros que refletem as luzes do ambiente, muitos deles manchados (como é que se mancha granito?). A moça do café quer trocar minha nota pois segundo ela minha onça está não só pintada como manchada e não pode aceitá-la. Troco a nota e olho pro teto, bufando: está todo manchado também. Manchas incomodam, agridem. A paleta do Terminal 1 se degrada em cinza, gelo, bege e azul-calcinha, tons com tendência ao desmaiado que uniformizam a experiência cromática na direção inexorável do tédio. Uma adolescente holandesa, que parece não controlar a própria gostosura, tira a minha atenção das tristes colunas retangulares que aqui e ali interrompem a amplitude dos saguões que comunicam, através de escadas rolantes, o térreo e o segundo andar, e o contraste entre curvas e retas me faz me perguntar: por que chegar ao Rio de Janeiro e ter só ângulos fechados como comitê de boas-vindas? Que tristeza para o carioca Oscar Niemeyer, que sabia usar o concreto para venerar as curvas femininas.

Terminal 1 visto de fora

Terminal 1 visto de fora

Outra coisa a se notar de imediato é que o aeroporto não tem wi-fi gratuito (só nas salas de embarque, e ainda assim ruim), e a rede 3G é lentíssima. Não se veem locais em que o acesso a internet ou rede elétrica seja facilitado, a não ser duas pequenas lan-houses. As luminárias, dispostas em estreitas fileiras listradas, não têm uma uniformidade – há luzes mais amarelas, outras mais brancas, outras parecem marrons. Por que um lugar de passagem precisa ser tão sem graça? O aeroporto nos proporciona três tipos de experiências: chegar, partir – ou esperar por uma das duas coisas, para você mesmo ou por alguém. De nenhum lugar no térreo se consegue ver o céu; se um aeroporto é o atracadouro do horizonte, o firmamento deveria estar firme em todo lugar para se olhasse – não faz sentido? Este Terminal foi criado em 1999 mas parece ser bem mais velho. Aqui e ali vemos portas em vidro fumê escuro fechadas sem nenhuma explicação para que servem além do famoso Proibida a Entrada de Pessoas Estranhas, que me faz me perguntar o tempo todo o quanto serei estranho ou familiar para poder pisar ali dentro.

"Arte" de Romero Britto espalhada pelo terminal

“Arte” de Romero Britto espalhada pelo terminal

Do outro lado do terminal, um grande mural de péssimo gosto, chamado Rio Fantástico – Monumental, bancado pela Petrobras e pintado por um tal de Sansão Pereira exibe os clichês cariocas mais recorrentes – o bondinho de Santa Teresa, o Maracanã, o Redentor, a Glória etc. Objetos horríveis retratando bichinhos, criados por Romero Britto, estão espalhados por ambos os terminais. Logo descubro que o posto aeroportuário da Anvisa está em greve. Aqui e ali há cartazes colados nas paredes, sem o menor critério, como em qualquer repartição pública. E um casal se despede com emoção. Choram tanto que penso em ir consolá-los. Subindo um pavimento, encontro, em frente ao posto da Anvisa – um espaço de uns 200 m2, vazio – uma mesinha de mármore e madeira clara onde posso me sentar para fazer essas notas e tentar recarregar a bateria do celular. Nesse lugar deprimente, de teto baixo, se pode ver a má qualidade das instalações e do acabamento do terminal. Uma locutora de voz insinuante, porém meio robótica, felizmente me sacode do meu torpor avisando chegadas e partidas – e recordo que é a voz mítica de Ísis Lettieri, verdadeiro patrimônio imaterial do Brasil, por ter trabalhando mais de 30 anos no Galeão; hoje sua voz só comparece gravada, em intervalos estranhos, daí o robotismo. Dois caras trabalham em uma mesa semelhante à minha escutando funk bem alto – e como esse espaço é separado pelos fundos de uma escada rolante, rola uma ambiência de discoteca. “Aqui tudo é construção e já é ruína“, cantaria Caetano Veloso ao olhar as paredes descascadas de um terminal inaugurado há apenas 13 anos.

Cantinho confy para escrever

Cantinho confy para escrever; ao fundo, o tenebroso mural

Eduardo Paes chega trazendo a Bandeira Olímpica. No auditório lotado de jornalistas, ele se autoglorifica e lança o hino das Olimpíadas no Brasil, um troço realmente horroroso, chamado “Os grandes deuses do Olimpo visitam o Rio de Janeiro“, uma salada de obviedades sobre samba-funk. Escapo da sessão de perguntas a Paes – e político lá responde alguma coisa que não queira? – para seguir o passeio. Em frente à Engraxataria do Presente, noto que o Terminal 1, construído em 1977, é ainda mais feio do que o 2. Lúgubre, de teto acanhado, estruturado em tons ainda mais escuros, e bem mais lotado, dá vontade de pegar o primeiro avião para voltar de onde se veio. Sério que essa é a primeira impressão do Brasil para a gringolândia? Granitos escuros no chão, paredes cinzentas e frisos metálicos cinzas dividem espaço com aberrações arquitetônicas como uma claraboia azul-cinzenta sobre uma espécie de mezanino inútil que apenas serve para ligar um pavimento ao outro. Ao final do terminal, próximo à Polícia Federal, uma parede de pastilhas vermelhas divide o espaço com paredes de fórmica bege, que escondem antigas lojas, ora desalojadas; há apenas um solitário trabalhador ali, um certo Rosenberg, com quem travo o seguinte diálogo:
— Olá, tudo bem? O que você está fazendo aqui?
— Como assim? Quem é você?
— Perguntei primeiro, quem é você?
— Mas se eu não te conheço, como vou dizer?
— É que só tem você aqui.
— Porque esta é a última loja dessa área. Logo vamos fechar.
— E o que você faz?
— Todas as instalações telefônicas do aeroporto. Por quê?
— É pra uma matéria — desisto.
— E por que não falou antes? — riu. Neguinho só conversa com você se você diz que vai sair publicado em algum lugar.

Seu vizinho é, estranhamente, a Confederação Brasileira de Judô, que acaba de trazer mais medalhas ao país – o espaço é decorado com fotos enormes de judocas como Flávio Canto e Aurélio Miguel. E a seguir temos um terraço vazio que dá para, ufa, a pista do aeroporto, mas não existe uma única cadeira para contemplar as idas e vindas dos aviões – e cada janela é decorada com um enorme logotipo da Infraero. Medo que roubassem os vidros?

O mais tosco estudante de arquitetura reprovaria esse mezanino inútil

O mais tosco estudante de arquitetura reprovaria esse mezanino inútil

Descubro que há um hotel ali, o Luxor, onde se hospeda por no mínimo três horas a R$ 200. O atendente me informa que o hotel tem 100% de ocupação e que não há vaga naquela hora, desculpe. Seu vizinho é uma capela em que só se oferece serviço religioso a católicos ou evangélicos – viajantes judeus, budistas ou macumbeiros que vão rezar noutra freguesia. E a seguir há a praça de alimentação do aeroporto, ocupado por restaurantes de pouca tradição e nula importância gastronômica; garçons te chamam para comer no seu pedaço como os porteiros dos puteiros da rua Augusta caçam os clientes para suas casas noturnas. O único toque de classe reside no restaurante Palheta, em que há um certa sensação de glória decadente na decoração que usa aviões da Segunda Guerra, livros e fotos aeronáuticas – o restaurante também oferece vista para a pista. Nota-se que havia antigamente um terraço, infelizmente agora fechado por essas horrendas janelas-Infraero que tapam a visão. Me sentindo um tanto aéreo enquanto contemplo um grupo de aeromoças cariocas, penso se não teriam uma maior lentidão de movimentos que as aeromoças de outros lugares. Um louquinho de camisa da seleção brasileira e chapéu de cowboy (me dizem que ele vem todo dia ao aeroporto) gasta um par de horas vigiando os aviões – você pode ficar o dia inteiro no Palheta, se quiser, ninguém vai te incomodar nem perguntar se você quer alguma coisa. No Galeão ninguém está nem aí pra você.

Assim o Rio trata seus turistas: sem wifi nem tomadas

Assim o Rio trata seus turistas: sem wifi nem tomadas

Na Engraxataria do Presente papeio com Vanderlei Vicente do Nascimento, 60 anos, há 30 anos brilhando pisantes entre o Galeão e Santos-Dumont. Pra ganhar o salário mínimo e as caixinhas, o natalense trabalha das 6 da matina às 11 da noite: já lustrou sapatos de Zagallo, Dedé, Piquet e Parreira – sua glória foi ter ido ao Jô Soares. Cada engraxada custa R$ 13; somente executivos solicitam o serviço – ”A culpa é desses tênis malditos, que todo mundo usa agora, ninguém mais tem classe“. Somos interrompidos por um cortejo de cerca de 200 servidores das agências reguladoras – Anvisa, Anac, Ancine etc – que lutam por salários melhores. Por conta da operação-tartaruga há filas de mercadorias engargaladas no porto seco do Galeão, me informa a bonita servidora Sanya Franco: “Dilma não negocia com ninguém, quer ganhar pelo cansaço“, diz, ela mesma com um profundo ar de tédio. Tédio é uma doença contagiosa aqui. (Sobre o bizarro papel das agências reguladoras, sugiro o excelente e estarrecedor artigo do crítico de arquitetura Fernando Serapião na Folha de S.Paulo. contando como Cumbica ficará ainda mais horrível por culpa da Anac.)

Doidinho vai todo dia ao aeroporto para "ter lições de partir"

Doidinho vai todo dia ao aeroporto para “ter lições de partir”

O aeroporto é um coração que se contrai antes do almoço até antes do jantar, se abrindo de manhã bem cedo e a partir das seis da tarde. Um grupo de dez viajantes cegos esbarra em uma turma de surfistas que têm de pular as gatinhas bronzeadas sentadas no chão, onde conseguiram achar uma tomada para ligar o iPad. Não há tomadas, e, noto agora, também não há plantas em nenhum lugar do aeroporto – não é bizarro isso, nesta cidade tão selvagem e verde? Um painel na esteira que liga o Terminal 1 ao 2 conta a construção do aeroporto e percebe-se que ele é ainda mais triste do lado de fora, sem nenhuma ideia arquitetônica original a nortear o projeto. A sensação de que a morte passou por perto do seu voo certamente habita esses grandes espaços desertos da esteira de passagem entre terminais, e me lembro das almas penadas de JR Duran e também da frase de Alain de Botton sobre nosso estado de espírito ao visitar um aeroporto: “A felicidade parece estar sempre em um outro lugar que não aqui“. Menos esperançosa ou cínica, outra frase boa é “Todos os dias o aeroporto me dá lições de partir“, esta do fatalista Manuel Bandeira. Após 40 horas zanzando pelo aeroporto, certamente aprenderia algumas lições – nenhuma sobre a beleza, no entanto. A não ser a beleza contida na voz glacial e sexy da, ahhh, que saudade!, Íris Lettieri.

A fantasmagórica esteira que liga o Terminal 1 ao 2 lembra: você vai morrer

A fantasmagórica esteira que liga o Terminal 1 ao 2 lembra: você vai morrer

UPDATE: Horas depois de eu postar esse texto, rolou um BLECAUTE no Galeão. Derruba e começa tudo de novo do zero, vai.


Os impostores

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Renato, Alê, André, RB e Ulissão: Faith No More... Cover

Renato, Alê, André, RB e Ulissão: Faith No More… Cover


Nos anos 80/90, de ônibus, as bandas cover cruzavam o país levando aos rincões mais longínquos do Brasil Profundo o rock que só era visto na TV

Sim, meus caros, também tive meus dias de pop star — melhor dizendo, de pobre star. Fim dos anos 80, ressaca do rock nacional, o Brasil foi infestado por uma doença chamada bandas cover. Na época, nenhum grupo de rock importante visitava o Brasil, Collor tinha roubado todas nossas economias, não havia internet, ninguém sabia direito como se comportavam os rockstars em tempo real, e o acesso às novidades do pop era muito limitado. Pra ficar sabendo das coisas antes, por exemplo, eu costumava jogar fitas cassetes (lembra?) na mão de um vendedor de discos da Galeria do Rock, que a cada seis meses voltava de Londres com os hits. E hoje você se irrita se o hit daquela banda de pós-rock filipino que um amigo falou de manhã no Twitter demora mais que dez minutos pra baixar.

Voltemos ao meu pobre-estrelato. Como as bandas não visitavam o Brasil, a gambiarra foi inventá-las aqui mesmo. A coisa já havia sido criada com as dezenas de grupos que tocavam o repertório dos Beatles, os milhares de sósias de Elvis e as bandas-tributo a Doors, Stones etc. E assim surgiram o U2 Cover, o Rush Cover, o Billy Idol Cover, o The Cult Cover (cujo vocalista era o saudoso Redson, líder do Cólera), o Gun’s Cover… e a Faith No More Cover, onde este cronista foi tecladista (também fiz uns frilas como o “sexto membro” da Guns’n'Roses Cover).

Ao contrário da maioria, o FNMCover era em nada parecido com sua matriz. Ao contrário: fazíamos questão em não nos parecer com os originais, embora tocássemos, de fato, muito bem (os caras do Sepultura e Ratos do Porão sempre apareciam nos nossos ensaios e volta e meia tocavam conosco). Renato, o histriônico vocalista, longe de exibir o esquizo-sex appeal de Mike Patton, era um índio de 2 metros de altura, 17 anos e longos cabelos abaixo da linha cintura (no busão, nosso lar, o chamávamos de Perla, a cantora paraguaia). Ulissão, o líder e nosso guitar hero, era um gordinho cabeludo-careca (tapava o cocuruto com uma bandana) vagamente parecido com Jim Martin. O multiinstrumentista André Namur, o baixista, tinha uns 30 centímetros a menos que sua fonte Billy Gould e gostava de praticar stage diving a bordo do… case do seu baixo. O baterista, Alê, não headbangeava os dreadlokcs como Mike Bordin: tímido e superfocado, era gago e, ao contrário da maioria dos bateristas que vão se cansando durante as apresentações, ao final do show já tocava duas vezes mais rápido (embora fanático por thrash metal, também frilava para uma banda de axé). Diferentemente do tecladista Roddy Bottum (tive de googlar agora pra lembrar o nome dele — fiquei anos sem conseguir ouvir FNM), minha trademark não era o chapéu de cowboy, e sim wayfarer pretos – nossos fãs tinham certeza de que eu era cego. Um de nossos números era encerrar o show com “Epic” emendando com o triste pianinho da música-tema do seriado Hulk; enquanto o resto da banda saía do palco, eu era abandonado sozinho, com as mãos no vazio, até que o roadie — Ki Chi, hoje dono do restaurante Cão Véio — me resgatasse. Isso sempre fazia sucesso com as fãs mais caridosas.

Sim, FÃS. Muitos fãs. Em 1990, o FNM havia estourado na MTV com “Epic” e nossa chegada a Jundiaí teria contornos de beatlemania não tivéssemos viajado de ônibus de linha – contudo, a chegada foi triunfal, com direito a tietes nos rasgando camisas e cuecas e invadindo o camarim atrás de atenção e carinho. Antes de entrar no busão para voltar a SP, meia-dúzia de moleques me cercou: queriam porque queriam autógrafos. Mas como, se eu não era o Roddy Bottum? No começo me recusava a assinar, mas percebia que os fãs se chateavam com isso — uma vez ouvi que eu era “mascarado”, creiam. Resolvi assinar só RB, iniciais em comum com o “outro”, o que me tirava um pouco a culpa pela impostura.

E, juro, foram muitos autógrafos. Éramos excelentes imitadores, embora todos da banda achassem ridículo copiar roupas e trejeitos da banda matriz, como os outros cover. Éverson, o vocalista da U2 Cover, só falava em inglês no dia do show e realmente acreditava ser o líder da banda irlandesa; no fim de carreira, juntando canções de U2 e Legião fez um combo Bono—Renato Russo… pague por um mala e leve dois. Ganhou muita grana com isso; o máximo que consegui foi juntar 300 dólares para descolar uma jaqueta italiana Perfecto (genuína). Assim cruzamos o país para levar a mensagem de metal, psicodelia e anarquia da banda de San Francisco. No sul, completamente chapados, tocamos o repertório inteiro do FNM em ritmo reggae; revoltados, os fãs nos deram uma surra de latinhas de cerveja e garrafas de pinga, mas ficamos firme arreggueando todas as canções até o fim. Claro, atravessamos o país sempre de ônibus, ao contrário das outras cover, que faturavam bem mais e viajavam de avião. Uma das raras trips pelo ar foi para Aracaju, conforme registrada aí acima, no camarim de uma boate cujo nome me escapa.

Em Adamantina (SP), cidade rota da cocaína, a qual recém havíamos descoberto, nosso ônibus foi parado pela polícia e minuciosamente revistado – encontraram holofotes que nosso baixista bebum tinha surrupiado da casa de shows, além de dois litros de Fanta Uva muquiados na mochila do Ulissão. Em Machado (MG), onde perdi as lentes de contato (precisei ser levado ao palco pelos companheiros, daí nasceu a fama de cego), tive um interlúdio romântico com uma garota que encontrei na minha poltrona – e mais tarde o motorista teve de driblar a polícia da cidade, que perseguia o ônibus, para largar a mocinha em casa: ela era filha do prefeito e muitos anos mais nova do que havia sussurrado ao tecladista cegueta. No interior do Paraná, fomos atirados pra fora do bumba por causa de nossa insistência em fumar e cantar clássicos do punk. Em Campinas, participando do Festival Cover, tocamos para 20 mil pessoas e destruímos os quartos das concorrentes Rush Cover e Guns’n'Cover, hospedados no mesmo hotel que a gente mas mauricinhos demais pro nosso gosto. No Olympia, quando as clássicas cortinas do palco da finada casa de shows se fecharam, derrubaram meu pesadíssimo sintetizador Mirage Ensoniq (eu tocava sempre à frente, à Jon Lord) na cabeça de um fã, que teve de ser levado ao hospital. Em Apiaí (SP), nosso vocalista adolescente comemorou seu primeiro porre em pleno palco, mandando um “Boa noite, Jundiaí!“. Apesar das gafes, Renato era o maior galã da banda; sua companhia favorita era Pulga Joe, o cabeleireiro anão famoso por emular Billy Idol: certa vez encontramos os dois trancados no camarim em uma suruba com seis meninas. Em Alagoas, fomos cercados por agroboys filhos de pistoleiros, que correram atrás da banda na praia disparando o conteúdo de seus três-oitões em nossos calcanhares. Talvez estivessem ainda magoados com nossa versão de “War pigs”, cover do cover (FNM também tocava o clássico do Black Sabbath): no primeiro acorde, um mizão monumental, Ulissão sem querer mandou um ré — e ainda teve a cara de pau de chutar o seu Marshall, colocando a culpa da desafinação no amplificador.

O ônibus, nosso lar semanal, era espaço para profundas discussões filosóficas. Certa vez, o gigante Renato, fascinado pelas tatuagens dos integrantes do Mötley Crüe, tomou vários cascudos de nosso líder Ulisses, sessenta centímetros mais baixo: “Pára com essa babaquice, porra! Tu não é homem? O importante é a música, seu cusão!“. Sempre recordo esse importante mandamento quando vejo uma banda de visual espalhafatoso. E até hoje lembro do impacto que foi ouvir pela primeira vez “Smells like teen spirit”, do Nirvana, que escutamos dezenas de vezes seguidas no bumba; apesar da lição do Ulissão, na semana seguinte todos estávamos usando camisas xadrez pra pegar as gatinhas do New York, então o bar dos roqueiros descolês de SP. E foi de ônibus que a banda foi ver, afinal, ao histórico show do Faith No More no Rock in Rio, em janeiro de 1991. Na volta, decidimos parar com aquela palhaçada e arrumar um emprego. Não fazia sentido: ao vivo, o original tocava muito pior que a cover. Para demonstrar nossa falta de profissionalismo, abaixo tem um vídeo da antológica apresentação no Programa Livre do Serginho Groissmann. Como se pode notar na ridícula entrevista, éramos somente músicos — sem a menor manha para o caô habitual aos pop stars.


Jornalismo Cultural X Jornalismo Autoral

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Hunter Thompson dando duro em seu escritório em Puerto Rico

Hunter Thompson dando duro em seu escritório em Puerto Rico

A partir de técnicas do jornalismo literário, o curso propõe caminhos para praticar o jornalismo cultural – tendo como foco a mídia impressa: o jornalismo praticado em revista, suplemento cultural e livro. Serão discutidos todos os formatos clássicos do jornalismo impresso, dando ênfase aos principais: perfil e reportagem.

O ponto de partida das aulas é o desenvolvimento de um projeto: a classe será organizada como em uma redação, para que seja criada uma revista ou blog, tendo como base pautas, histórias e personagens que passam pelo b_arco.

Ao fim de cada mês, será convidado um profissional para um bate-papo com os alunos. Estão previstos para a programação: Fred Melo Paiva (O Infiltrado, da History Channel), Cassiano Elek Machado (Folha de S.Paulo), Ivan Marsiglia (O Estado de S.Paulo) e Bruno Torturra (Pós-TV).

Bibliografia sugerida: coleção Jornalismo Literário da editora Companhia das Letras.

- Espera-se dos alunos a leitura de revistas e jornais reconhecidos pela criatividade de seu jornalismo — no Brasil, Piauí, Trip, Bravo!; e do exterior, Slate, Salon, Les Inrockuptibles, Vanity Fair, Rolling Stone, além dos suplementos culturais dos jornais New York Times, The Guardian, El País.

- Levar lápis e papel – ou computador.

Indicado para jornalistas, estudantes de jornalismo, blogueiros e escritores.

Carga horária total: 36 horas

Saiba mais detalhes em: http://barco.art.br/jornalismo-cultural-x-jornalismo-autoral/


100 dias de Haddad

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Tae kwon do, violão clássico, marxismo moderno e política olho no olho: alguns dos temas articulados por Fernando Haddad, o prefeito mais surpreendente produzido por São Paulo. Perfil de capa da revista Poder de março

Seu Fernando abre a porta com a cara amassada, cabelo revolto, camisa amarrotada, olhos vermelhos. Sorri, jeitão despachado: “Que coisa, gente… capotei numa soneca, desculpem. Entrem, querem uma água, um café?“, oferece. Um cão velho, meio labrador, meio golden retriever, vem sorrindo com o rabo e senta-se aos pés de Seu Fernando, que parece atordoado no sofá da sala de seu apartamento. “Sentem, por favor. Começamos pela foto ou pela conversa?” O fotógrafo sussurra que, como a imagem de Seu Fernando vai parar na capa da revista, talvez fosse interessante trocar de camisa. Dois minutos depois e Seu Fernando volta numa camisa listrada clara, para fora da calça, o jeitão ainda despachado —porém os olhos agora estão alertas e o cabelo, impecável. “Podemos começar?

Seu Fernando é assim chamado pelo porteiro do prédio onde vive, no Paraíso — um desses edifícios dos anos 70 de pé-direito alto e arquitetura tão despretensiosa que passam batidos; sua vista é para outros edifícios de classe média, sem céu, skyline tipicamente paulistano. A reportagem de PODER fica intrigada: cadê a segurança da prefeitura? “Não tem segurança“, afirma Fernando Haddad, 49, mandatário da sexta mais populosa cidade do mundo, que concentra o décimo PIB entre as cidades do planeta e 13% de todo o PIB brasileiro. “A segurança da prefeitura se queixa, mas não quero guarda-costas pra passear com o cachorro e andar de bicicleta com minha filha no Ibirapuera. O prefeito tem que sair na rua, explicar às pessoas o que acontece. A segurança diz que é perigoso: a gente compra briga, demite, corta contrato de empresa poderosa… deve ter gente que não gosta de mim. Mas prefiro assim.

De fato, embora Haddad seja elegante no trato com o prefeito anterior — afinal, o PSD de Gilberto Kassab pertence à base aliada do governo federal —, seus atos em seus primeiros cem dias não deixam dúvida para com a impressionante mudança no estilo de governar. Uma das brigas que comprou é com a empresa Controlar, responsável pela inspeção veicular em São Paulo. Segundo Haddad, por conta dessa taxa a cidade perde cerca de R$ 250 milhões anuais em IPVA — os motoristas preferem emplacar o carro nas cidades vizinhas para fugir da taxa —, e além disso, a Controlar é uma “empresa ficha-suja“. O prefeito também afastou 400 pessoas em pleno Carnaval: todos funcionários ligados à gestão Kassab, a quem o prefeito evita criticar diretamente — mas, para bom entendedor, os recados são claros.

No mesmo dia da entrevista, um sábado, Haddad tinha dado o pontapé inicial em uma gigantesca obra na região sul, na avenida M’Boi Mirim, que combina piscinões e novas avenidas que custarão cerca de R$ 400 milhões. Na inauguração, destacou: “Em menos de 60 dias, conseguimos uma licença ambiental que estava parada há mais de ano”. Só nos primeiros 50 dias de governo o prefeito participou muito mais de reuniões com o secretariado e circulou muito menos do que Kassab, que ia a um evento por dia: foi a 25 eventos públicos, passou o boné em visita à presidenta Dilma Rousseff e fez 82 reuniões.

Ele adora reunião“, diz um funcionário da prefeitura que prefere não se identificar. “Costuma até fazer reunião enquanto almoça no gabinete.” Outro funcionário diz que Haddad é uma mistura de Lula com Dilma. “Tem a capacidade de negociar do primeiro, mas é durão como a presidenta. Só que ele tem um diferencial: cobra direto, não delega. E tem boa memória. Cobra uma tarefa, duas, três vezes, mas se na quarta o cara não fez, ele mesmo manda ver. Não chega a ser ríspido, mas é severo.” Haddad comprou brigas em seu próprio partido ao nomear funcionários de escalões inferiores identificados com Serra e Kassab: seguindo sua gestão à frente do MEC, o prefeito afirma contratar de acordo com o currículo.

O jeitão Haddad é o mesmo envergado à época do MEC, onde esteve à frente por oito anos: irrita-se com atrasos, tem horror a seguranças, nunca se senta à cabeceira de mesas — e volta e meia incorre em termos inusuais, ora de jargão técnico ora acadêmicos, que intimidam os interlocutores. “Ele tem uma mania de falar em ‘clivagem‘, ninguém entende…“, brinca um outro funcionário da prefeitura. Traços de uma formação inusual também na política. Nunca houve um prefeito de São Paulo com formação acadêmica tão extensa quanto a de Haddad, autor de cinco livros de filosofia política.

Conciliando os estudos com o trabalho ao lado do pai, o libanês Khalil Haddad, dono da Mercantil Paulista, loja de tecidos na rua 25 de Março (onde, diz, pegaria o gosto por falar olhando no olho e desenvolveria a intuição para adivinhar bons pagadores e caloteiros), Haddad formou-se em direito no Largo de São Francisco, depois mestrou-se em economia e doutorou-se em filosofia, sempre na USP. No começo dessa trajetória foi presidente do diretório acadêmico, sucedendo um de seus melhores amigos, Eugênio Bucci, ex-presidente da Radiobrás. “Fernando era estudioso e tinha um ativismo acentuado: militava forte, mas tinha um tino de administrador impressionante.”

Fernando Haddad é a grande incógnita da política brasileira“, afirma o editor e historiador Milton Ohata. “Sua vitória usou o emblema do ‘novo’ e tanto a composição de parte de seu secretariado quanto seus atos de governo sugerem que ele busca confirmar esta marca. Mas, praticando até agora uma hábil política de coalizão, Haddad fez concessões ao ‘velho’“, pondera Ohata, mencionando a célebre imagem do então candidato do PT entre risos e abraços com Lula e Maluf. Chocante à primeira vista — um antigo inimigo do PT oferecia dois minutos na campanha de TV em troca de cargos —, a imagem deve ser vista em perspectiva hoje.

Pragmático, Haddad repete uma velha justificativa — “o PP é um partido da base aliada” —, mas, na prática, deu um golpe de mestre. A secretaria de Habitação, um dos principais focos de suspeitas de corrupção na gestão de Kassab, foi uma exigência de Maluf para fechar o apoio a Haddad, descontentando setores do PT ligados a movimentos pela moradia. Só que, antes de ceder a Maluf, Haddad desidratou a secretaria, transferindo a atribuição pela aprovação de empreendimentos, alvo de muitas suspeitas, para a secretaria de Controle Urbano; além disso, 98% do orçamento da secretaria do PP, cerca de R$ 1 bilhão, foram congelados — manobra astuta que recebeu críticas da oposição tucana.

Da várzea ao Municipal

Fernando Haddad cresceu no Planalto Paulista, zona sul, onde costumava jogar bola em campos de várzea — é são-paulino. Conhecido como “Dandão” quando jovem — tem 1,83m e calça 45 —, fez o ensino médio no Colégio Bandeirantes. No terceiro ano da faculdade de direito iniciou sua atuação na militância estudantil: presidente do centro acadêmico, participou do movimento Diretas Já. Casado com a dentista Ana Estela Haddad desde 1988, é pai de Frederico e Ana Carolina. Professor de ciência política na USP, como consultor da Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas (Fipe) criou a tabela Fipe, principal regulador dos preços de veículos no mercado nacional — embora deteste dirigir. Começou na política como chefe de gabinete da Secretaria de Finanças, de 2001 a 2003, na gestão Marta Suplicy — onde criou os CEUs —, e em 2003, passou a integrar a equipe do Ministério do Planejamento, como assessor especial, onde inventou as PPPs, parcerias público-privadas. Na época em que foi ministro da Educação de Lula e Dilma Rousseff, entre 2005 e 2012, aprendeu a lutar tae kwon do.

A arte marcial tem sido cada vez mais trocada pelo xadrez político, onde o prefeito vem se esforçando por unir o discurso socialista à ação direta. “A ‘novidade’ de Haddad talvez esteja na tentativa de unir a teoria e a prática, algo que nos últimos anos andou esquecido pela esquerda“, analisa Ohata. Esquerda, sim: o termo, que a alguns parece ter perdido o sentido e a outros ainda atemoriza, a Haddad é cara — passada a campanha, em que todo radicalismo poderia assustar o eleitor, ele se declara socialista sem o menor medo.

O filósofo prefeito ainda crê que o socialismo é o horizonte a não perder de vista. Mas a filosofia, ao menos por enquanto, tem se dado no plano prático; o excesso de trabalho faz com que o prefeito tenha menos tempo para reler seus filósofos de predileção, Habermas e Adorno, e restrinja as horas livres ao cinema (gostou de Argo e Lincoln) e aos prazeres da mesa (bate ponto no Rubayat, Gero e Pomodori, e se confessa chocólatra). Workaholic, Haddad tenta manter o estilo de vida de professor — o que inclui o ócio criativo, reservando à prefeitura apenas o horário das oito às oito. Na sala, um violão acompanha o songbook de Chico Buarque e a partitura de um rondó de música clássica. Uma hora depois da entrevista, este fanático por Beatles compareceria à abertura da temporada do Teatro Municipal, em cujo programa constava Tristão e Isolda, de Wagner, sob a batuta de John Neschling.

Se, no mesmo dia, presencia-se um prefeito conjugar no mesmo discurso os termos M’Boi Mirim, Habermas, Paul McCartney, Wagner e soneca — sem contar alguns palavrões dirigidos ao pastor-psicólogo pentecostal Silas Malafaia, que o atacou duramente na campanha —, pode-se afirmar que a cidade vive ares bem diferentes. “Nosso prefeito nasceu sob o signo dos idealistas aquarianos, seres sociáveis abertos a novas ideias“, afirma a horoscopista da Folha de S.Paulo, Barbara Abramo. “E, embora tenha de lidar com grupos econômicos e políticos poderosos, poderá vir a ser governador de SP por sua obra durante a prefeitura“: assim estaria escrito no mapa astral de um prefeito nascido aos dois minutos do dia de aniversário de São Paulo, 25 de janeiro. No momento, ele afasta essa possibilidade. Mas não nega. Como filósofo e político, o sério porém afável Seu Fernando entende que dialética é a arte de dizer nem sim nem não, muito antes pelo contrário — e ainda assim, fazer sentido.

Todo sabemos que São Paulo é refém da especulação imobiliária. Como reformular a política urbana? Congelar bairros seria uma solução? Não quero que o debate sobre o Plano Diretor se restrinja à especulação. Bairros cuja capacidade de adensamento está comprometida irão sofrer, como a Vila Olímpia, a não ser que investimentos em obras viárias sejam feitos. Pra isso precisamos privilegiar o transporte público. Vamos repensar as marginais Pinheiros e Tietê, e as avenidas Cupecê e Jacu-Pêssego, como pólos de expansão lineares, em vez de centros isolados. Nos desenvolvemos em movimento de manada: todo mundo indo pro mesmo lado. A ideia é ocupar ao longo de toda uma linha. Hoje derrubamos todos os sobrados de um bairro, liquidamos um lugar e em seguida vamos procurar outro. Agora, meu temor é que, para tentar não haver um adensamento absurdo em um bairro, se queira o congelamento de obras… mas, no fundo, o que se quer é afastar as pessoas. Há bairros onde não se gosta do famoso “gente diferenciada” por perto. Tem gente nos bairros nobres que não gosta de carro, o que é ótimo; mas tem gente nesses bairros que não gosta de gente. Por que não mixar empreendimentos as classes A e B com habitações populares, para os trabalhadores morarem mais perto de onde trabalham?

Como foi o choque de realidade ao assumir a prefeitura? Não houve surpresa porque eu vinha acompanhando a situação da prefeitura desde que deixei o MEC. Me surpreendi com alguns percalços: crianças estudando em escolas ainda em construção, suspensão de contratos de zeladoria, como no caso da jardinagem… Agora, o esforço feito para São Paulo recuperar sua capacidade de investimento será uma obra titânica. Hoje investimos, por habitante, a metade do que o Rio investe, o que já não é nenhuma maravilha. Imagina o esforço que não será chegar ao fim do mandato com obras prontas. Estamos muito endividados e o orçamento está comprometido com contratos de custeio com empresas terceirizadas em 14 bilhões de reais! Na outra ponta, a cidade está insolvente em sua dívida com a União. Hoje a cidade está inviável.

Muita gente o criticou por ter desaparecido durante as enchentes de verão. Qual deve ser a função do prefeito diante de uma calamidade? A presença simbólica — e cênica — do prefeito deve existir quando ocorrer uma ameaça à integridade física das pessoas. Como a água não tem chegado às casas das pessoas, a atividade do prefeito deve ser administrativa: nos próximos dias vamos liberar a licitação de 70 obras em R$ 150 milhões em áreas de alagamento — assinamos com a presidenta Dilma convênios para áreas de risco e vamos buscar dinheiro do PAC. Queremos um piscinão na Anhaia Melo, e encomendei estudos na praça da Bandeira e na Pompeia, há 30 anos com problema crônicos. Na Bandeira achamos uma solução técnica diferente: faremos um cilindro ao longo da Nove de Julho na direção da Paulista; é um reservatório que acompanha o leito da Nove de Julho e que vai drenando a água para o Tamuandateí, uma obra revolucionária.

O número de carros rodando em São Paulo vai fazer a cidade parar. Por outro lado, o governo federal atrelou o desenvolvimento do país ao estímulo da indústria automobilística, política típica dos anos 1960, zerando o IPI dos automóveis até o fim do ano. Quando São Paulo chegará à decada de 2010? Essa semana licitamos os seis primeiros corredores de ônibus, na zona leste. Queremos mais 150 km de corredores; hoje temos 130 km. Outra coisa é considerar a bicicleta um modal de verdade. Não gosto dessa história de ciclofaixa só aos finais de semana. Vamos tentar na Câmara conceder o transporte de bicicleta em São Paulo nos moldes que funcionam em Paris, porém melhor, pois vamos integrá-la com o bilhete único. E as bicicletas serão gratuitas. Bicicleta não pode ser só para lazer.

O Nova Luz, projeto que urbanizaria a cracolândia, foi cancelado. Por quê? Vamos promover uma mudança bem interessante no projeto, com a parceria com o governo do Estado e a União, em um edital aberto para 20 mil moradias. Isso vai revolucionar o centro da cidade! [Entusiasma-se.] Imagina 50, 100 mil famílias voltando a morar no centro, hoje desocupado? É muito mais interessante do que jogar 45 quarteirões na mão de uma empresa, repassando a ela o direito de desapropriar — uma coisa que me deixava preocupado. Tenho uma fé enorme nesse projeto. É um caminho sem volta para a requalificação do centro.

Correram rumores de que a Casa Fora do Eixo teria indicado o ex-ministro da Cultura, Juca Ferreira, para secretário de Cultura. Essa história procede? Houve esse encontro com o pessoal da Casa Fora do Eixo, em especial com o Pablo Capilé, que foi uma das pessoas que sugeriram Juca Ferreira na secretaria. Escolhido o secretário, ele articulou uma conversa com duas mil lideranças de movimentos culturais independentes, que por si só foi um evento de cultura sem precedentes na história da cidade. Tudo é cultura, enfim. Da mediação do encontro dos moradores da praça Roosevelt com os skatistas e a celebração de um acordo, até a criação de um centro cultural ao lado do estádio de Itaquera, pra não deixar aquilo parecendo uma espaçonave que aterrizou sem nada em torno.

O carnaval também foi diferente este ano em São Paulo… O Juca fez questão de sinalizar uma política de ocupação e suporte aos blocos de carnaval. Não precisa proibir o carnaval de rua pra que a cidade funcione. Queríamos permitir a folia, percebemos a vontade de celebrar, se encontrar, ganhar as ruas, então você vê que a cidade pulou o carnaval como há muito não fazia. Já eu fui só no Sambódromo…

Na gestão anterior as subprefeituras eram ocupadas por coronéis da PM. O que mudou? A grande maioria dos novos subprefeitos é de arquitetos e engenheiros. É uma mudança de filosofia. Uma subprefeitura não pode ser uma delegacia que reprime, ou um órgão burocrático que fica carimbando coisas, e sim um lugar que procura os cidadãos para pensar em oportunidades de cultura, negócios, empresariais. A comunidade tem de participar da subprefeitura, não pode ficar tudo centralizado em mim.

Que achou da recepção que a blogueira cubana Yoani Sánchez teve no Brasil? Não foi curioso ver Jair Bolsonaro e Eduardo Suplicy juntos, a defendendo? Acompanhei pouco, porque achei o debate pouco apetitoso. Não vi razão pra tanto foguetório. É uma pessoa bem-vinda, mas muita gente interessante vem pro Brasil e não tem essa recepção.

Por falar em paradoxos, sua famosa foto com Lula e Maluf equivaleu a uma queda do muro de Berlim. Ainda faz sentido falar em esquerda e direita? Nossa! Totalmente. Mas você tem que ver quem está apoiando quem pra entender o movimento que está sendo feito. Não abdiquei de princípios em nome do apoio de Maluf. Recebemos pouco investimento do PAC nesses anos, e muitas coisas dependem do ministério de Cidades, que é o do Maluf.

Maluf recentemente escreveu na Folha defendendo o Minhocão… Não gosto do Minhocão. Não teria feito. Se o Arco do Tietê der certo, é uma possibilidade natural inviabilizar o Minhocão.

Nas eleições, o centro expandido, que concentra a intelectualidade, votou em peso em Serra, enquanto que nas periferias o PT venceu. Como é governar uma cidade dividida? Escolaridade não é renda. Na USP eu ganhava de longe do Serra. Nas universidades tenho certeza de que ganhei a eleição. Ganhei nos estratos mais elevados de escolaridade, e não de renda, que são coisas diferentes. Quanto à recepção, mantenho minha rotina. Vou aos mesmos cinemas, restaurantes, parques. Sinto uma boa expectativa. As pessoas me conhecem melhor hoje. E já tomei medidas coerentes com o que eu diria que ia fazer. A Universidade da Zona Leste está garantida, assim como o Instituto Federal na Noroeste, a nova avenida M’Boi Mirim, os corredores de ônibus, o edital de moradia no centro. Isso tudo em 50 dias!

De todo modo, a campanha demonstrou que a cidade continua conservadora em termos comportamentais, não? Sem dúvida a onda atual é conservadora. Mas acredito que existem forças conservadoras, e não que a sociedade paulistana em si seja assim. Cabe a nós seduzir a sociedade com novas ideias, provocar o debate.

Notório por suas críticas ao PT, o colunista da Veja, Reinaldo Azevedo, tem chamado você de Supercoxinha, como um sujeito bom moço que quer ser super-herói. Que acha disso? Ah, você não vai me perguntar dele, vai? [Irritado.] Não frequento o ambiente virtual dele. Ele é uma caricatura de jornalista, né? Mas acho que para a esquerda é funcional a existência dessa figura. Faz muito bem pro nosso projeto! As pessoas vêem o quão patética é a alternativa nesse momento. É como o pastor Silas Malafaia. Os ataques dele à minha campanha foram tão ridículos que acabaram me ajudando.

Se tivesse 20 anos hoje, acharia atraentes a estrutura atual da democracia partidária? Não agiria diferente. Estava nascendo o PT quando comecei, um fenômeno único na história do Brasil, um partido nascido de movimentos sociais. Trinta anos depois, o PT ainda é um ponto fora da curva, nenhum partido tem a nossa história. E é até ruim que seja assim. Não vejo hoje nos novos partidos nenhum construído a partir de uma base tão capilarizado no Brasil a ponto de ter um terço do eleitorado. Os outros partidos são construídos de maneira burocrática ou elitista. Por outro lado, existe uma despolitização do debate no mundo inteiro. Em geral a crise detona novas ideias, mas essa crise não tem trazido à tona movimentos mais espetaculares de inovação: hoje o debate político é muito administrativo. Falta imaginação. Poucas lideranças no mundo apontam caminhos inovadores. O Lula foi um deles.

O Manifesto Comunista comemora 165 anos. Marx ainda tem algo a dizer? Continua atual, claro: é o autor crítico por excelência, insuperável. As tendências de mercantilização, de redução dos seres humanos a uma lógica que não dominam, estranha a eles próprios, domínio da natureza e destruição do meio ambiente, financeirização da economia, acumulação de riqueza em meio à pobreza, aumento da desigualdade, ele percebeu muito antes. Do século 19 é meu favorito, mas no século 20 eu prefiro o Adorno.

Marx talvez dissesse que hoje somos escravos de um meio de produção que é ao mesmo tempo meio de gozo: o smartphone. Como é seu relacionamento com a tecnologia e as redes sociais? Mantenho distância. Me desconecto totalmente. Quase nunca respondo e-mail. Prefiro resolver por telefone ou pessoalmente. Mas algo que mudou meu comportamento foi como fonte de informação. Busco tudo na rede. Gosto dos portais, leio o blog do Luís Nassif, mas não entro em Twitter ou Facebook. Acho que política se faz face to face.

Cabe filosofar na prefeitura? Em todo lugar! Mesmo em minha carreira acadêmica, sempre olhei o Estado como o melhor instrumento de transformação da sociedade. Numa prefeitura você mobiliza saberes para tomadas de decisão que vêm da discussão sobre ética, justiça, equidade, democracia…

E metafísica? Não, isso não! [Risos.] A realidade e o mundo já são metafísicos demais. Quer coisa mais metafísica que o capital? Hoje somos regidos pelo capital, que é metafísico.

Dá tempo de ler algum livro? Que faz nas horas vagas? Tenho lido livros sobre urbanismo. Gosto do que todo paulistano gosta. Saio muito pra comer, e todo mundo aqui em casa curte comer fora. Vou muito ao Rubayat, Pomodori, Gero, lanchonetes do Itaim, Tenda do Nilo vou demais… Mas ando sem tempo. Dedico uma parte do tempo pra ouvir música, tocar um pouco de violão. No cinema, assisti Lincoln, Argo, e gostei muito.

Quais são seus melhores interlocutores hoje? Bom, tem o pessoal do Pizza Socialista que se reúne toda semana no Bonde Paulista, liderados pelo Roberto Schwarz, um povo que gosto muito de encontrar. Estão lá a Leda Paulani, secretária do planejamento, o André Singer, o Jorge Grinspum, amigos da USP, Eugênio Bucci, a esposa dele Maria Paula, que trabalhou comigo no MEC, Nunzio Briguglio, o pessoal do PT, da prefeitura, amigos do MEC…

Dizem que você adora reunião… Na prefeitura você tem que cuidar de muitos assuntos diferentes simultaneamente. E gosto de trabalhar de forma horizontal, despachar com muita gente, conhecer a hierarquia. Quero conhecer o responsável direto por uma ação prioritária. Às vezes está na mão de um diretor lá embaixo e quero saber quem é. Minhas reuniões têm duas dúzias de pessoas. Não gosto de delegar pra uma pessoa cobrar outra. Aliás, fica o conselho: isso não funciona. Despache com o terceiro, quarto escalão. O prefeito tem que conhecer todo mundo. Saber quem está apertando o botão ali na ponta é imprescindível.

E o futuro? Reeleição ou governador de São Paulo? Não gosto de pensar em dois mandatos. Quando era ministro, pensava em termos de projeto. Só saí quando achei que a reforma educacional estava feita. Na prefeitura, recebi um mandato de 4 anos. Se pensar em oito, já começo a encostar o corpo, deixar as coisas pra depois…

E como vai ser São Paulo no futuro? Uma cidade mais equilibrada, com as pessoas morando mais próximas do seu trabalho, uma cidade mais sustentável, com mais tempo livre, menos transtornos e mais encontros.

O amigo
por Eugênio Bucci

Me lembro do Fernando chegando às reuniões que fazíamos na São Francisco. Eu era candidato a presidente do diretório acadêmico e a gente se reunia muito em uns bancos recurvados que ficavam em baixo das escadas, no saguão principal. O Fernando foi um dos mais ativos na campanha. Era muito jovem, tinha 20 anos. Depois disso, virou meu ‘sucessor’, quero dizer. Na campanha do ano seguinte (a eleição foi em outubro de 2004), nós o escolhemos para ser o candidato a presidente. E ele ganhou. O nome da nossa chapa era The Pravda, juntando The New York Times com o Pravda, um jornal americano e um russo, fazendo um trocadilho com ‘depravada’. O que me chamava a atenção no Fernando? Era estudioso, bem estudioso, mas juntava isso a um ativismo muito acentuado. Ele militava pra valer. E tinha um tino de administrador impressionante. Gostava muito de Beatles, eu e ele tocávamos ‘Blackbird’ no violão, e ele achava que o Paul MacCartney era o maior baixista do mundo. Somos os dois são-paulinos, mas só fomos descobrir isso vinte anos mais tarde. Fomos amigos de falar quase todo dia e nunca falávamos de futebol. Durante um tempo, falávamos muito mais de habermas. Depois de formados, convidei o Fernando para trabalhar conosco na revista Teoria e Debate, do PT, mais ou menos em 1989. Escrevemos alguma coisa juntos lá. Depois ele dedicou o livro Em Defesa do Socialismo para mim. E eu dediquei o Videologias para ele. Por que o considero um político diferente? Ele se preparou acadêmica e profissionalmente para isso. Sabe muito de direito, sabe muito de economia (e conhece filosofia de sobra). Acima disso, no entanto, fez o que chamo de a melhor escola de administração do mundo, que é ser dono de loja na 25 de março. o seu Khalil, o pai dele, era dono da Mercantil Paulista e, quando era estudante na São Francisco, o Fernando dava expediente lá todos os dias. É uma cara profissionalmente completo para o poder executivo. E está se saindo muito bem no aprendizado da política.”

BOX 2

Escrito nas estrelas

por Barbara Abramo

Nosso prefeito nasceu sob o signo dos idealistas aquarianos, estes seres sociáveis sempre abertos a novas ideias e capazes de incorporar as contribuições de todos aqueles interessados em melhorar o mundo. Teimoso ele é: além de aquariano, seu ascendente, Escorpião, o dota de tenacidade e persistencia na luta por objetivos e sonhos. Com o ascendente em harmonia em Júpiter, seu papel será de aumentar o conhecimento e trazer formulações e sínteses novas para o campo da educação, uma área privilegiada para ele. Vênus e Marte em trígono tornam fácil somar aliados em prol de metas — os esportes também podem ser bom campo em que irá brilhar. Mercúrio e Lua tornam sua mente profunda e plástica: comunicação será um ponto forte com seus subordinados. Mas terá de enfrentar desafios ao lidar com grupos econômicos e politicos poderosos em sua gestão, representados por Plutão em seu ascendente. Março, julho e novembro serão meses decisivos, testarão seu poder de comando e sua aceitação pelo povo. Sua maior obra para São Paulo será na educação, esportes nas escolas e limpeza e conservação de esgotos e ruas. Poderá se candidatar a um cargo maior e vir a ser governador de São Paulo por sua obra durante a prefeitura.


Zed, o antropófago

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Zed Nesti em seu ateliê na Santa Cecília

Zed Nesti em seu ateliê na Santa Cecília

Zed Nesti, pós-realista? Release para a expo do amigo Zed, em cartaz toda sexta e sábado das 17h à 0h, até 29 de junho no Club Noir, na rua Augusta 331

“Arte não é coisa que se pendure na sala de jantar.” Desde sempre essa é a minha definição de arte — ao ver uma obra em que sinta alta densidade de caô, de begismo ou de fru-fru, surge certeira a dúvida: “Colocaria esta obra na minha sala de jantar?”. À resposta positiva, já saberia: não, não é arte — é bonito, é bacana, mas não é arte.

(Fru-fru eu definiria como excesso de decorativismo; begismo é o movimento cultural parido pela cor bege, fornecendo produtos artísticos assemelhados às roupas íntimas das nossas avós e tias; e caô é tudo aquilo que tem cheiro de arte, parece arte, fala como arte… mas não é arte — caô é como carisma: você não sabe definir o que é, mas sabe o que é quando vê.)

Ok, sei que minha concepção de arte é bastante simplista — afinal, despida de todos aqueles torneios sintáticos e ornamentos teóricos que lemos nas resenhas das obras dos principais artistas do jet-set. “Meu amor me ensinou a ser simples. Como um largo de igreja. Onde não há nem um sino. Nem um lápis. Nem uma sensualidade”, diria Oswald de Andrade. Olhar direto as coisas, que nos parecem bastante complicadas só de ver, parece ser uma das lições trazidas pela arte de Zed Nesti. Que, vejam só, quando perguntado por mim qual seria sua concepção de arte, me disse, na lata: “Arte não é coisa que se pendure na sala de jantar”. Já tinha gostado da sua arte; ao escutar isso, passei a respeitar o artista (que, além de pintor, ilustra para revistas e jornais e, fora embalar o jovem Joaquim, ainda arranja tempo para tocar guitarra e praticar esgrima).

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Talvez porque à grande arte não se permita a digestão fácil. Não se almoça enquanto se observa um massacre, não se janta enquanto se presencia um redenção, não se mergulha um croissant no café enquanto se apaixona. A grande arte prende o estômago, prende a respiração, prende o olhar. A grande arte de Zed Nesti prende os sonhos. Os seus sonhos, os sonhos da sociedade consumista, os nossos sonhos consumidos. As obras desta exposição, Pinturas 2011—2013, foram concebidas e concluídas em um período difícil para Zed. Tempo de perdas pessoais, de mortes, mas também de nascimentos: despediram-se seus pais, lhe deu as boas-vindas seu filho Joaquim. Um período em que a realidade bambeou sob os pés do artista (como em Homem Levitando I e II e Mulher Levitando com Mesa). “Realidade”, disse Philip K. Dick, “é aquilo que sobra quando você para de acreditar nela”. Entre 2011 e 2013 Zed foi assombrado pela natureza por vezes incrível e inversossímil da realidade. O artista respondeu à perturbação trazida pela realidade apropriando-se dela, e lhe devolvendo em forma dos quadros desta exposição.

Apropriação é um conceito cental em sua obra. Obcecado pelos painéis publicitários que ainda havia espalhados por São Paulo antes da Lei Cidade Limpa (que varreu a publicidade do mapa paulistano expondo sua feiúra), Zed apropriou-se de imagens das propagandas da Calvin Klein para transpô-las em grandes quadros a óleo, concebendo a obra CK (2005-2007) — uma das peças chegou a levar um ano e meio para ser pintada. Em Celebs, exposição que levou sua arte ao Japão em 2009, Zed apropriou-se de imagens conhecidas de artistas famosos (feitas por grandes fotógrafos) como Heath Ledger, Angelina Jolie, Iggy Pop, Scarlet Johanson, em uma série de quadros a óleo de 22,8 por 30,5 cm. Em The Book of Faces of Facebook, Zed apropriou-se de dezenas de rostos do catálogo de amigos de seu perfil no Facebook e os desenhou a carvão em cadernos de papel reciclado no tamanho 14 x 22 cm.

Embora seja direto seu olhar para a realidade — da publicidade, da fotografia ou da rede social — , a arte de Zed não faz uma cópia direta da realidade. Ao buscar uma transposição exata das cores dos originais para a cópia em óleo sobre tela ou carvão sobre papel, o artista impõe-se um procedimento irônico, crítico, e ao mesmo tempo com a ambição de verossimilhança — talvez, uma certa nostalgia — na observação da realidade. Afinal, sua técnica consiste basicamente roubar uma imagem, trabalhá-la através do Photoshop, e em seguida projetar a imagem roubada sobre uma superfície lisa, para daí mapear-lhe as cores, dividindo-a em centenas de pequenos quadrados, até encontrar o tom certo de tinta para cada um deles. Usar uma técnica tão antiga quanto a pintura a óleo para reproduzir com exatidão uma imagem feita para vender jeans, e nisso demorar-se anos, como na série CK, é uma tremenda ironia em relação ao capitalismo e à sociedade de consumo: aquilo que poderia ser objeto de consumo rápido passa a ser objeto de longa maturação.

O mesmo procedimento irônico se dá em relação aos retratos. Síntese de identidade, sequestro da alma, o retrato do rosto resume a personalidade. Em um primeiro estágio, o rosto de cada celebridade é fotografado com excelência. Em um segundo estágio, é multiplicado milhões de vezes em todos os meios possíveis, impressos ou eletrônicos. E, então, através da curiosa operação de deslocamento de valores estéticos administrada por Zed em suas pinturas e desenhos, o retrato, ao passar da imagem multiplicada bilhões de vezes para uma solitária peça de arte, volta a ter um valor único. Tanto em Celebs quanto em Facebook, temos ainda um terceiro elemento, vital para o funcionamento da sociedade pós-capitalista: a acumulação. O desfilar inumerável de celebridades e rostos comuns brinca tanto com nosso desejo (em relação a essas imagens) quanto com o desejo delas em relação a nós (das celebridades e dos amigos do Facebook; do mercado da cultura e do mercado da amizade).

Keith, roubado de Annie Leibovitz, roubado de Rembrandt, roubado de Caravaggio

Keith, roubado de Annie Leibovitz, roubado de Rembrandt, roubado de Caravaggio

Para dar o exemplo de como funciona o processo de apropriação através de uma das peças de sua nova mostra, tome-se Keith Richards. O quadro baseia-se numa propaganda da Louis Vuitton cuja fotografia do lendário guitarrista é assinada por Annie Leibovitz. A união Keith+Vuitton+Leibovitz por si só é uma joint venture de ícones da cultura, da arte, do pop, da moda — e do capitalismo. Rolling Stones é a banda de rock que mais faturou na história; Louis Vuitton é a marca de acessórios de viagem mais cara e desejada; Annie Leibovitz, a principal fotógrafa das capas das revistas Rolling Stone e Vanity Fair. Leibovitz usou o chiaroscuro de Caravaggio para que Keith vendesse malas. Caravaggio usava assassinos para retratar santos. Zed, que tem Rembrandt (seguidor de Caravaggio) como uma das maiores inspirações, usou a imagem de Leibovitz para ressignificar o santo maldito Keith Richards. Sequestrou a alma do stone do império das malas de volta aos domínios da arte. Através da pintura a óleo, o olhar de assassino de Keith sai da perspectiva do pop — assimilável, multiplicável, consumível — e ganha de novo o real. Corporificado no óleo, Keith Richards volta a ser perturbador, perigoso, instável — como a realidade. O que era multiplicado aos milhares passa a ser novamente único.

Ao lado dessa apropriação crítica, na arte de Zed um novo procedimento surge nesta exposição: a colagem. Nas principais peças de Pinturas 2011—2013, é como se o artista roubasse para sua obra dois dos principais conceitos psicanalísticos de Freud: o deslocamento e a condensação. Em Freud, os sonhos seriam essencialmente a tentativa de realização de um desejo reprimido alojado no inconsciente — um desejo primordialmente sexual, proibido pela moral. O sonho é, segundo a psicanálise, formado pelo deslocamento e pela condensação. O deslocamento é a obra de censura — em que um elemento do sonho, no nível latente (a realidade a olhos abertos), é substituído por seu todo, ou em um cenário modificado, ou por seus fragmentos constituintes.

Já a condensação é o resumo das ideias que têm pontos em comum, uma analogia entre si, fundindo elementos do nível latente com traços comuns, em um só. A condensação estabelece uma relação entre o conteúdo manifesto (a lembrança) e o latente: propõe um jogo entre o nível do conteúdo, onde existem ideais, conceitos, sensações, e o nível do manifesto, onde existem imagens. Nesse processo, pode ocorrer uma transferência de uma ideia para outra totalmente diversa. O desejo inconsciente pode não vir à consciência, por conta de convenções sociais, culturais, morais — e, se o inconsciente busca o prazer, a censura impede a sua realização. Então, esses desejos surgem nos sonhos como relâmpagos, disfarçados através da condensação, que junta no sonho parte das vivências do cotidiano com vivências censuradas.

O mecanismo da condensação omite elementos dos pensamentos inconscientes, e permite que apenas fragmentos do conteúdo oculto apareçam no sonho — ali, vai combinar elementos do conteúdo oculto em um só conteúdo manifesto. Por outro lado, o mecanismo do deslocamento muda a ênfase de um elemento relevante, que pode ter importância no inconsciente, para algum outro elemento, sem importância — com o intuito de disfarçar o desejo oculto. Ambos os mecanismos operam de forma cruzada; daí ser tão complexa a interpretação dos sonhos.

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É complexa a interpretação dos sonhos de Zed, expressos em suas pinturas, e esta tarefa deixo a espectadores e críticos. Só quero chamar atenção, aqui, em como ambos os mecanismos psicanalíticos podem ser aplicados à sua arte: a apropriação, através do deslocamento, e a colagem, através da condensação. Porque nesta exposição também temos apropriações de imagens da propaganda (como modelos e editoriais de moda), retratos de artistas (como o tropicalista Zé Celso), imagens icônicas (amplificadores Marshall, latas de Heineken, edifícios paulistanos) e até mesmo editoriais (como reportagens sobre os desastres de Chernobyl). É possível que o inconsciente de Zed, assim como o nosso, seja assombrado não somente por seus fantasmas pessoais, mas também pela fantasmagoria que nos coloniza a indústria da mídia, da moda, da cultura pop.

Tais fontes comparecem em um estranho trabalho de colagem, uma vez que estão justapostas ora em cenas aparentemente realistas, ora marcadamente anti-realistas, uma vez que não há nelas uma necessidade de uma perspectiva única. Em obras excepcionais como Mesa Branca, Rifaina e Queimada, seres muito grandes coexistem com seres menores; criaturas de épocas diferentes compartilham o mesmo quadro; cenários urbanos e da natureza agregam-se sob o mesmo ponto de vista. Nelas, a meu ver, além dos citados Rembrandt e Caravaggio, podem ser vislumbrados no percurso que Zed percorreu em sua obra os nomes de Goya, Velásquez, Francis Bacon, Lucien Freud, Chaim Soutine e Neo Rauch — todos artistas que pautam sua obra por imagens figurativas em que o corpo humano tem evidente protagonismo. Mas aí também consigo ver reflexos do anti-realismo de Hyeronomus Bosch, tanto por sua renúncia a uma perspectiva única quanto por seu apreço a um simbolismo de hermética interpretação. Se as escuras cores de Zed estivessem em exposição no início do século 20, o teríamos um antropofágico modernista; se Zed estivesse expondo durante os 60, seria o mais sombrio dos tropicalistas. Nos anos 10, trata-se de um melancólico anti-realista — que, por ironia, é obcecado pelas técnicas da pintura realista. Um pós-realista?

Talvez, melhor que rotular ou interpretar a arte do esgrimista Zed Nesti seja deixar-se ser perturbado por ela. “As pessoas da sala de jantar/ são ocupadas em nascer e morrer”, cantavam os Mutantes. Na sombria antropofagia de Zed Nesti, mais que simplesmente nascer, morrer e jantar, importam os sonhos — e os sonhos que dos sonhos nascem.

— Bar do Fuad, São Paulo, março de 2013

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Ladeira Tim Maia

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O pai leva a filha nos ombros
A mãe puxa o piá pela orelha
Bicicletas descem apeadas
Motocicletas sobem no gás
A vó apanha do guardachuva
O bebum tropica zuzo bem
A gata zoa em ziguezague
Diaristas carregam compras
Operários perdem havaianas
O lóqui solta o caô pra gata
Daqui se vai pro metrô?
Entre árvore e construção
Vedada para automóveis
Aberta para os grafites
Quem será que vai descer
Quem será que vai subir
Levando a minha memória
Levando o meu desencanto
Levando Sísifo nas costas
A Ladeira Tim Maia não pára
Mais e mais lépida e faceira
Ensina a lição que importa
Tudo é tudo e nada é nada



Amor = Humor

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Estão juntos há 3 anos, se conhecem desde os 11 e não param de trabalhar juntos (e muito). O casal Clarice Falcão e Gregorio Duvivier são a coisa mais engraçada e graciosa do novo humor brasileiro. Perfil duplo para a revista Bravo! do mês de abril

Enquanto pesquisava vídeos e performances de Gregorio Duvivier na internet, o repórter recebeu uma chamada no celular. Coincidência: era Gregorio Duvivier. No entanto, após algumas tentativas de comunicação, o repórter notou que não era Gregorio Duvivier quem o havia chamado — e sim, o bolso dele. Sem querer o ator tinha resvalado em “ligações recentes” e o smartphone, smart demais, chamava o repórter (que pouco antes havia combinado uma entrevista para o dia seguinte). Mas, apesar de não se dirigir ao repórter, a voz de Gregorio Duvivier soava. Plena meia-noite de domingo, Gregorio Duvivier ensaiava para a peça que estrearia dali a uma semana, o musical Como Vencer na Vida Sem Fazer Força.

Teatro, internet, TV fechada, TV aberta, literatura — e até no celular alheio: Gregorio Duvivier está em todos os lugares. Claro que sua musa estaria à altura de tanta atividade: é Clarice Falcão, atriz, cantora, roteirista, parceira de vários esquetes no Porta dos Fundos, a produtora de vídeos de humor que já soma 72 milhões de visualizações em seu canal no YouTube. O casal ultrajovem (26 ele, 23 ela) é responsável por alguns dos esquetes mais nonsense do canal: “O homem que não sabia mentir“, em que Gregorio não consegue forjar desculpas esfarrapadas a Clarice e é traído por uma voz bizarra denunciando o que fazia de verdade; “Barata no banheiro“, em que Clarice pede para Gregorio matar uma barata no banheiro mas a tarefa se revela impossível; “Versão brasileira“, em que Gregorio assusta Clarice ao acordar com a voz dublada como em um seriado americano; “Setor de RH“, em que os Supergêmeos do desenho animado são despedidos da liga de super-heróis; e “Essa é pra você“, em que Clarice, cantando uma canção folk, revela para Gregorio que o engana com o porteiro.

Os esquetes da dupla consagram a química aprovada na minissérie O Fantástico Mundo de Gregorio, um falso reality show estrelado por ambos, e na peça Inbox, escrita pelos dois, sobre John e Clara, um casal que se apaixona via internet. “A gente queria entender como é esse lugar que ocupa na vida das pessoas o virtual, esse lugar que é verdade mas não é“, diz Gregorio, em conversa com Bravo! em um café do Leblon. “E existe um suspense porque um personagem pode ser uma mentira, e a personagem também, porque o virtual é cheio de máscaras, um mundo de fantasia e ficção“, emenda Clarice (sim, eles são o tipo de casal em que um começa uma frase e o outro termina). O processo de criação da peça, que ficou em cartaz em 2011, foi curioso: escreviam juntos a escaleta — enredo básico, descrevendo cenas — e depois cada um escrevia os diálogos separadamente; às vezes, Clarice escrevia as falas de John, e Gregorio, as de Clara.

Mundo comédia

Tanto o falso reality quanto os esquetes do Porta dos Fundos expõem a paixão do casal pelo humor feito através do documental, presente no sitcom Curb Your Enthusiasm de Larry David, no seriado The Office ou na literatura de Miranda July e no trabalho de Mike Berbiglia. “As comédias de antigamente tinham aqueles diálogos tão espertos que pareciam inventados, um tom farsesco. Mas a gente gosta desse tipo de situação em que os atores gaguejam, em tom realista“, diz Clarice. “No Brasil tem um problema: o ‘tom de comédia’, ‘música de comédia’, ‘direção de arte de comédia’, como se fosse só se pudesse rir em um outro universo, onde as pessoas reagem de uma maneira diferente“, diz Gregorio.

Estereótipos, música sublinhando a piada, sabe? Fo fo fo fonnnnn“, explica Clarice. “Nossa briga é juntar uma coisa de verdade, algo de improviso, com um texto forte por trás. Mas na TV você não pode contar com a cumplicidade da plateia como acontece em um show de improviso como no Zenas Emprovisadas“, diz Clarice, se referindo ao show de humor de que Gregorio participa há 10 anos, ao lado de nomes como Marcelo Adnet, Fernando Caruso e Rafael Queiroga.

Além de brigar contra estereótipos, os dois detestam tanto a correção política quanto a falsa incorreção política — aquela que, para demonstrar independência, se permite fazer piadas reforçando velhos clichês, algo muito presente no stand up. “Fazer stand up nunca foi minha praia“, conta Gregorio. “É chato porque nos EUA é feita pra boteco, e no Brasil ocupou espaço de teatro — e não vejo sentido dar um palco enorme pra um ator; como um cara que adora teatro, acho meio exagerado“, diz, criticando o excesso de stand ups que invadiu o teatro brasileiro. “Aqui no Rio parecia igreja evangélica: ‘Caralho, perdemos mais um teatro pro stand up!’“, ri — relevando que a importância do stand up foi revelar novos autores.

Falso politicamente correto

Mas tem críticas ao formato. “Me irrita ver as pessoas falando o mesmo texto: ‘Ah, sabe uma coisa que eu não entendo? Estava vindo pra cá e…’ É tipo mesa-redonda de futebol: você quer que o sujeito lá em cima fale o que você acha. Vejo o público ir ao stand up para verem seus estereótipos serem confirmados pelo cara ali em cima. Vira comício, palanque; não é humor. E os comediantes acabam escravos da plateia que querem agradar e dão coisas fáceis, tipo ‘a Preta Gil é gorda’, ‘gaúcho é viado’…“, analisa Gregorio. Clarice atalha: “E as piadas politicamente incorretas que pretendem demonstrar independência em relação ao politicamente correto usam coisas tipo ‘preto é igual macaco’, que, poxa, são totalmente reacionárias, fazem há mil anos“, afirma.

Porém, o politicamente incorretíssimo é a praia do Porta dos Fundos. Em “Confessionário“, um padre confessava a um colega que abusava de um menor que já era abusado pelo primeiro, só para lhe provocar ciúme; em “KKKKKK“, um desastrado membro da Ku Klux Klan convidava negros para participar de uma manifestação. “Acho importante que o riso recaia sobre o mais forte. Nesse esquete o riso está sobre os padres pedófilos. No ‘KKKKKK’, ridículos não são os negros, e sim os racistas“, diz Clarice. “A gente tenta fazer piadas que ainda não fizeram“, afirma Gregorio. “Se tiver um esquete com um português, ele não vai ser burro. No Mundo do Gregório, havia uma situação em que um anão ganhava de mim em um teste. Queremos o humor de inversão“, conclui.

Para um casal de criadores tão autoconscientes do que fazem, parece estranho ouvi-los criticar um procedimento por excelência do humor sofisticado: a ironia. “A gente está no processo de se livrar da ironia, do blasé“, diz Clarice. Gregorio rebate: “O YouTube gerou essa indústria de pessoas rindo dos outros: é a indústria do schadenfreude, da videocassetada, de zoar a pessoa se fodendo“, diz. Clarice defende: “Pega supermal aparentar ser ingênuo, e criou-se essa bancada do Twitter, do Facebook, de comentadores de sites, de gente que não produz nada e só ridiculariza. Esses ‘haters’ são juízes. Fico agoniada com a internet porque às vezes você percebe uma energia ruim em coisas que lê“, confessa Clarice, que sempre tromba com os “haters” por conta da megaexposição de seu canal no YouTube: ali, o curta “Laços“, escrito por sua mãe, a dramaturga Adriana Falcão, foi um dos mais vistos em todos os tempos — e a canção “Monomania“, dedicada à sua obsessão por Gregorio, já alcançou mais de dois milhões de visualizações.

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Por falar em laços, o casal, além de super enturmado em uma enorme trupe de talentos que inclui o cineasta-prodígio Matheus Souza, e os outros membros do Porta dos Fundos, como Fábio Porchat e Antônio Tabet, está cercada de artistas na própria família. Clarice é filha dos roteiristas Adriana e João Falcão; Gregorio, do músico e escultor Edgar Duvivier e da compositora Olívia Byington, e enteado do diretor e produtor Daniel Filho. Ajudam ou atrapalham?

Na verdade, a gente adora trabalhar em família“, diz Clarice. “Mas, por meus pais seram tão criativos na escrita, fui por caminhos diferentes, tentei a música, por exemplo.” Gregório concorda: “Meu pai toca 15 instrumentos, esculpe e pinta, minha mãe tem o ouvido absoluto… é uma concorrência desleal. Mas é uma coisa meio circense… a gente vem de estruturas que também são familiares profissionalmente, então é natural todo mundo trabalhar junto“, diz.

TV pra quê?

Cinema está nos planos da dupla dinâmica. Querem tanto escrever uma comédia romântica quanto fazer um longa-metragem para o Porta dos Fundos — que também tem sido assediado pela Globo. Gregorio hesita a respeito de entregar o capital somado pelo coletivo de humor na internet à televisão ou ao cinema. “Na TV aberta a gente não vai poder fazer uma série de coisas: tem que domar palavrões, não pode brincar com marcas, por exemplo“, diz. “E no cinema corre-se o risco de fazer uma longa piada sem graça ou juntar vários esquetes desconexos, que não dá certo, como se viu nos filmes do Casseta & Planeta. Estamos pensando nessas opções com calma“, afirma Gregorio, que tem equilibrado aplausos pela atuação surpreendente no musical Como Vencer na Vida, e encarado críticas à comédia Vai que Dá Certo, de Maurício Farias (que, apesar das resenhas negativas, faturou a décima maior abertura do cinema brasileiro pós-retomada).

Misturar amor e trabalho não desanda na receita da dupla, é o que dizem. Embora na fase do namoro — Clarice mora com os pais e Gregorio vive sozinho na Gávea — , os dois dizem que o relacionamento só bambeia quando ficam longe demais um do outro. “Quando a gente briga, e não briga muito, em geral é porque a gente não está trabalhando junto“, diz Clarice. É uma história que vem de longe: Gregorio conheceu Clarice pois ela era fazia jazz com a irmã — ela estava com 11 anos, ele com 14. Depois Gregorio trabalhou com o sogrão João Falcão, aos 17, e a amizade seguiu via MSN. Encontraram-se de novo na PUC, quando ela começava a estudar cinema e ele terminava letras (sua TCC rendeu o livro de poemas A Partir de Amanhã Eu Juro Que a Vida Vai Ser Agora, elogiado por Millôr Fernandes e Paulo Henriques Britto). O namoro só engatou depois de uma sessão do Confissões de Adolescente, que Clarice fazia com Matheus Souza: os dois ficaram e nunca mais desgrudaram.

O primeiro filme protagonizado por Gregorio, o elogiado Apenas o Fim, dirigido por Matheus, era para ter sido estrelado por Clarice — mas ela se recusou a refilmar uma cena e acabou cortada. Mas, no segundo longa de Matheus, Eu Não Faço a Menor Ideia do Que Eu Tô Fazendo da Minha Vida, a ganhar as telas em maio, é Clarice a estrela, personificando uma garota que enquanto não decide se vai cursar medicina fica matando aula e conhece um rapaz interessante (não, não é o Gregorio; neste filme ele faz só uma ponta). O longa de Clarice, aliás, deve estrear na mesma época em que a talentosa garota sai em turnê de lançamento do primeiro álbum, reunindo as canções viralizadas pelo YouTube e mais uma meia dúzia de inéditas, sempre em seu estilo voz-e-violão temperado com muita fofura freak agridoce. “Fofura freak agridoce“: eis uma boa definição para este adorável casal.

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Cadão grandão

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Marsha Cottrell. Under the Illuminating Hydrogen 2012  (detail), iron oxide on mulberry paper, 62 x 105” (157 x 266.5 cm).

Marsha Cottrell. Under the Illuminating Hydrogen 2012 (detail), iron oxide on mulberry paper, 62 x 105” (157 x 266.5 cm).

Um dos artistas mais versáteis surgidos nos anos 80, o músico, jornalista, ilustrador e contista Cadão Volpato lança hoje, quarta-feira 15-5, seu primeiro romance. Perfil para o Valor Econômico

Rivoli é um arquiteto paulistano, mas mais parece um sueco que tivesse saído de um filme de Jacques Tati: altão, louro e de olhos azuis, tem uma aura permanente de bebê espantado. Seu escudeiro, Tortoni, é o oposto: baixinho, troncudo, o taxista portenho é solícito e esperto. Ambos se irmanam nesse ar distraído, de clochard, de quem está fora do lugar. E estão: perdidos no meio da Argentina, procuram um incerto “hotel do fim do mundo” na Patagônia. Mesmo antípodas, criam uma amizade que lhes será cara, mais tarde, quando as ditaduras de ambos os países começarem a pegar pesado. Estamos nos anos 70, no romance Pessoas Que Passam Pelos Sonhos, que mostra outra faceta da caleidoscópica obra de Cadão Volpato.

A trajetória do artista começa na cena independente do rock dos anos 80, liderando a banda mais cultuada do período, Fellini, que gravou seis álbuns pouco vendidos, mas inspirou dúzias de músicos — entre eles, Chico Science. Anos depois, aquele roqueiro meio nonsense notabilizou-se como apresentador de TV (Metrópolis) e colaborador de vários veículos (como este Valor). Talvez música e jornalismo tenham ocultado seu coté contista, que rendeu quatro livros, todos habitados por um embate entre leveza e peso: Dezembro de um verão maravilhoso, Ronda noturna, Questionário, Relógio sem sol. Os caminhos paralelos no realismo na reportagem e no surrealismo da arte cruzam-se neste primeiro livrão de Cadão, uma narrativa de 300 páginas.

Escrevi o livro em um mês“, conta Cadão, fatiando um filé à parmegiana no Ugue’s, lendário boteco de Santa Cecília, bairro onde tem um escritório em uma sala dividida em co-working com outros artistas. “É uma história de homens distraídos. Aliás, esta é uma característica bem masculina: já reparou como as mulheres sempre reclamam que nós homens somos distraídos?“, ri. Convidado pela editora Babel para publicar um livro, Cadão deu-se o deadline de quatro páginas por dia, até que, aos poucos, aquele artista feito nas formas breves do conto, da canção e do desenho viu sua narrativa capturada por um fôlego maior. E estruturou um romance em imagens e cenas, sutis como os desenhos de Sempé ou Saul Steinberg. Influências sentidas, aliás, nas ilustrações de seu infanto-juvenil Meu Filho Meu Besouro e nas imagens que em breve reunirá em uma exposição em São Paulo (algumas podem ser vistas em seu site).

Livro entregue, a editora Babel cumpriu o destino prefigurado em seu ambicioso nome e esfacelou-se. Felizmente o autor salvou o rebento da tragédia e o reencaminhou às mãos da Cosac Naify, que envelopou a história no belo projeto gráfico de Flávia Castanheira, usando as “constelações imaginadas” da artista Marsha Cottrell. Trata-se de “uma epopeia fantasmagórica” conforme o crítico de arte Rodrigo Naves etiqueta o livro na orelha: à força de descorporificar seus personagens, a narrativa os volatiliza no limite do traço, aparições, como “pessoas que passam pelos sonhos“.

Narrando na terceira pessoa, a câmera de Cadão acompanha os personagens com a estranheza de um Google Street View, perto e longe, a uma altura flutuante, mantendo seus rostos visíveis o suficiente para que com eles nos familiarizemos, mas borrados, para que não possam ser reconhecidos de bate-pronto. “A natureza dos fantasmas é muito fluida“, insinua o narrador. Apesar de inexistir tensão ou conflito evidentes, aos poucos nota-se que o embate na trama se dá entre leveza e peso. “Por delicadeza perdi minha vida“, diria Rimbaud, definindo estes personagens ligeiros demais para enfrentar o Leviatã: as ditaduras que estremeceram Argentina e Brasil nos anos 70. A violência é mais espessa por não ser vista. Para uma criança, militantes que apanham em um corredor polonês podem parecer como recém-casados que protegem a cabeça ao receber o arroz na saída da igreja. Assim, uma ternura mediterrânea, meio doida, meio tola, atravessa essas vidas sem pendão para o épico: de Lao, o estudante de arquitetura escalpelado pelos milicos; Gábi, a botticelliana adolescente que enlouquece uma cidadezinha paulista; Asia, a enigmática mulher do arquiteto peruano; Francesco, o carente craque canhoto; e…

Há um segredo no livro“, sugere Cadão. “Está escondido, não chamo a atenção pra ele. Vou te dizer, mas você não pode escrever sobre, hein?“, pede. O segredo de que fala é o que torna a narrativa tão angustiante — uma realidade assustadora que pode deixar sem chão o leitor, ao desvendá-la. Seu tom aproxima a escrita do terreno de Pedro Páramo, de Juan Rulfo, e Conversa na Sicília, de Elio Vittorini. E também distancia o livro de duas tendências arraigadas na literatura contemporânea: o realismo e a autoficção.

Talvez por ser jornalista, Cadão guarda alguma repulsa pela “vontade de exaurir a fisicalidade” de descrições e psicologia, como supõe o realismo, e a “mania de falar de si mesmo” presente na autoficção. “Gosto de deixar um espaço para a imaginação do leitor“, explica, já pedindo o segundo café. A despeito de sua viagem pelas ditaduras latino-americanas ter muito de verdade, não há no livro pontes imediatas com “fatos reais” nem com a experiência do autor. Sim, Cadão foi militante da Libelu, movimento estudantil trotskista. Mas é outra vertente de sua vida que atravessa as páginas de Pessoas Que Passam Pelos Sonhos: o surrealismo. O mesmo que o fez encarnar, em um seminário concorridíssimo na USP dos anos 1980, o cineasta suíço Jean-Luc Godard — que, estranhamente, só falava em português.

Ou quem sabe fosse mesmo Godard, de passagem por algum sonho de Cadão. Mas esta já é outra história.


Estética do Frio

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Sobrevoando o pampa em busca da Estética do Frio

Sobrevoando o pampa em busca da Estética do Frio

Vitor Ramil, Angélica Freitas e Odyr Bernardi lançam novas obras e propõem Pelotas como o centro de um novo universo artístico brasileiro. Perfil triplo para o suplemento Ilustríssima, da Folha de S.Paulo, aqui na íntegra (e aqui, editado pra caber no jornal)

por Ronaldo Bressane, enviado especial a Pelotas

Em busca da Estética do Frio, passo um calorão em Pelotas. Apesar de a região ter acumulado duas semanas abaixo de 7º até setembro, chego à lendária cidade sulista sob 35 graus. Estética do Frio é um termo cunhado pelo músico e escritor pelotense Vitor Ramil e pode ser resumido no seguinte slogan: “Não estamos fora do centro, mas no centro de outra história“.

Produzir, a partir de sua própria tradição, uma antitropicália, um movimento artístico que envolve música, literatura e artes gráficas, levou a Estética do Frio a ganhar ressonância além do sul do Brasil, influenciando artistas uruguaios, argentinos, paraguaios. Todavia, já no desembarque no minúsculo aeroporto sulino (belíssima viagem desde Porto Alegre a bordo de um turbohélice sobrevoando lagoas & rios & pampas sem fim), os 35º em pleno inverno afastaram a hipótese de um encontro gelado com o menor movimento cultural do Brasil. A microcélula de terrorismo poético, armada por Ramil quando voltou do Rio de Janeiro nos anos 90, reúne outros “insulados” pelotenses: a poeta Angélica Freitas, pelotense que morou em São Paulo, México, Holanda, Argentina etc, e o artista gráfico Odyr Bernardi, ex-habitante de Rio, Curitiba e Porto Alegre. Curiosamente, apesar de residirem a quarteirões de distância uns dos outros e terem tanto em comum, o trio calafrio pouco se frequenta. Logo vim a descobrir mais esta singularidade de Pelotas: uma cidade onde a solidão encontra acolhida.

O trio está saindo da toca. Vitor Ramil lança, em junho, seu songbook e o álbum Foi no Mês que Vem, que reúne 33 canções de seus 33 anos de carreira, iniciada com o sucesso “Estrela estrela” composto quando o irmão caçula da célebre dupla Kleiton & Kledir tinha somente 17 anos – hoje ele está com 50 (os irmãos, que nos anos 80 venderam milhões de cópias com o hit “Deu pra ti”, seguem fazendo shows esporádicos). A parceira de Vitor em um futuro álbum, Angélica, a festejada Angie, 39, publicou em novembro de 2012 o segundo livro de poesia, Um Útero É do Tamanho de Um Punho (Cosac Naify). E o verborrágico Odyr, 45, usou o roteiro de Angélica para desenhar o romance gráfico Guadalupe (editado pela Companhia das Letras, saiu também em novembro), além de publicar também uma história em Dias Negros (Dead Pop), coletânea de quadrinhos lançada em Buenos Aires. A obra dos três tem chamado a atenção de críticos por sua singularidade, originalidade e força. “A Estética do Frio reabre uma discussão fundamental para a cultura letrada no Brasil, que é a sensação de exílio na própria terra – algo que tenho chamado de ‘lugar não-comum’“, resume o crítico Sérgio Alcides, professor da UFMG.

Vitor à frente de seu casarão

Vitor à frente de seu casarão

Ramil vai buscar o repórter no hotel e, antes de apanhar Angie e Odyr, dá um giro pela cidade. Sua recepção nada tem de fria: Ramil entusiasma-se genuinamente pelas ruas de calçadas largas povoadas por casarões neoclássicos centenários – alguns desertos, outros restaurados, muitos decrépitos. “Um amigo chileno esteve aqui de passagem e se apaixonou pela cidade. Disse que nunca viu nada tão decadente“, sorri o magro e barbado grisalho, sorri o magro e barbado grisalho, que daria um belo e diminuto Cristo nas “Paixões”de Nova Jerusalém. Decadência é uma virtude na obra de Ramil: remete a uma paisagem urbana que condensa passado e presente, em diálogo intenso com seus fantasmas – o contrário de uma cidade como São Paulo, por exemplo, em que a memória é continuamente pisoteada e varrida para debaixo dos tapetes da especulação imobiliária.

Claro que decadência só tem valor se houve fausto e glória. Situada entre as lagos dos Patos e Mirim, a 250 km ao sul de Porto Alegre, Pelotas tem um clima tão úmido que leva os locais a se orgulharem por residir na “segunda cidade mais úmida do mundo“, só perdendo para Londres. Ramil diz que adora passear à noite perto do porto em noites de nevoeiro. “Pego o carro, coloco um Radiohead e fico viajando no meio da neblina… não se vê nada“, conta. A paisagem interlagos e a proximidade com o porto de Rio Grande a fez uma cidade aberta ao exterior – em especial na época dourada em que exportava carne de charque e peças de couro para o mundo todo.

Exportava também sua juventude dourada para a Europa – daí a origem da fama da cidade como capital gay do Brasil: quando voltavam ao Rio Grande após temporadas de estudos, os jovens não economizavam no francês e no gesticular refinado, o que foi tido como “afrescalhamento” pelos gaúchos macho-chôs. A cidade era tão sofisticada que em 1833, ainda uma vila, erguia o primeiro teatro – o Sete de Abril, mais antiga arena em atividade no país – , onde se apresentaram lendas como João Caetano e Enrico Caruso. Em 1835 se tornou uma das primeiras cidades planejadas do Brasil, de traçado urbanístico todo quadriculado; foi batizada Pelotas devido ao nome das pequenas embarcações de couro redondas que atravessavam o Canal de São Gonçalo, que liga as duas lagoas.

O período áureo, tem, claro, a nota dissonante da escravidão. Como a produção do charque dependia da mão de obra escrava, a população de Pelotas chegou a contar com mais negros do que brancos – destacando-a do resto do Rio Grande do Sul: pelo censo de 2000, o IBGE aponta que 16% da população são formados por negros e mulatos. A presença forte da negritude consolidou Pelotas como pólo de religiões afro como candomblé e umbanda e resultou também em um carnaval de rua vibrante. “Uma das recordações musicais mais fortes que tenho da infância é a do carnaval na Quinze de Novembro, uma rua estreita por onde desfilavam os blocos burlescos e as escolas de samba“, lembra Ramil. “A batucada reverberando entre os prédios e o desfile entre o povo, sem cordão de isolamento, me emocionava… Até hoje quando escuto uma batucada tenho vontade de chorar.

Ramilonga

Um dos teatros mais antigos do Brasil

Um dos teatros mais antigos do Brasil

O batuque, que ocupou o centro da música de Ramil em discos como Satolep Sambatown (2007), hoje dá lugar a uma expressão sulista mais arcaica – a milonga, ritmo nacional dos países platinos. A primeira canção de Ramil com esse ritmo foi composta ainda em 1985, quando ele se mudou para o Rio de Janeiro: a tristíssima “Ramilonga”, que marcou sua despedida do sul (“Chove na tarde fria de Porto Alegre…/Nunca mais, nunca mais“). Quando Ramil voltou a Pelotas, nos anos 90, se deu conta de que este ritmo, tão popular entre os gaúchos do pampa quanto marginalizado pela música pop sulista, deveria ser o centro de sua obra.

E ao pesquisar sua origem se surpreendeu: “Tem uma tese que diz que a milonga vem de uma melodia medieval portuguesa chamada melos-longa, ou melodia longa, que veio para o Rio Grande do Sul e daí foi para a Argentina e o Uruguai“, desenvolve. “Outra teoria diz que nasceu em Montevidéu, num ambiente urbano, e que o milongueiro é aquele poeta improvisador. Mas a teoria mais aceita diz que a milonga seria, como o tango, originária da habanera, e que a palavra teria origem africana, viria do quimbundo, um dialeto falado por escravos que vieram para o Brasil e o Uruguai, significando o plural de mulonga, ou palavra. Então, milonga significa palavras“, teoriza.

A milonga caiu como luva na Estética do Frio. Ramil morava em Copacabana e, num dia muito quente, tomando seu mate, ligou a TV e viu uma notícia sobre um carnaval na Bahia, com todo mundo seminu pulando atrás. “Tomando o mate, ali de calção, pensei: jamais estaria atrás desse trio elétrico!“, ri. “Daí veio uma matéria sobre a chegada do frio no sul, aquelas imagens tradicionais dos caras escrevendo nos vidros nevados dos carros, campos com geadas, e tive duas sensações. Primeiro, saudade; depois, exílio. O telejornal tratava aquele povo seminu atrás do trio elétrico de modo mais natural do que aquelas pessoas escrevendo nos vidros dos carros. Logo me dei conta daquele sentimento de sermos ou não brasileiros, que todo gaúcho tem“, recorda.

Um amigo lembrou uma frase de Alejo Carpentier – “o frio geometriza as coisas” – , que deu liga à imaginação visual de Ramil associar o mate à paisagem do pampa, reta, infinitamente ocupada por gaúchos isolados com sua cuia de erva mate. “Qual seria o equivalente musical disso? Não seria um trio elétrico. Seria um cara sozinho tocando uma milonga. E daí surgiram esses valores: rigor, concisão, clareza, melancolia, profundidade, que são os valores que identifico na Estética do Frio.

Aos poucos, a ideia foi encontrando ressonância em outros artistas gaúchos, catarinenses, paranaenses – e também argentinos e uruguaios. “Além de haver construído uma obra que se tornou referência incontornável, Ramil alcançou um patamar de excelência raro, encontrável em poucos artistas, por haver formulado as idéias de sua estética, justamente na tal fórmula sintética da Estética do Frio“, aponta o crítico e escritor Luis Augusto Fischer. “Essa fórmula virou um hit crítico e estético: ano passado a Bienal do Mercosul mencionou o termo; em Buenos Aires e em Montevidéu os caras mencionam isso como uma espécie de movimento, mais ou menos como ‘Tropicália’ ou ‘Bossa nova’, logicamente guardadas as devidas proporções.”

Se Ramil recusa o rótulo de “movimento” para a Estética do Frio, porém, é inegável que suas reflexões podem ser percebidas em artistas do porte de um Jorge Drexler, por exemplo, músico uruguaio com quem Ramil tem gravado várias canções e se apresentado em conjunto. Curiosamente, o timbre de voz de Ramil remete a um compositor quase antípoda no “rigor e concisão” do Frio: Caetano Veloso. Influência diluída via João Gilberto: “Claro que essas influências existem, assim como Chico Buarque e toda a bossa nova, marcas da minha geração.” Quase como se Ramil fizesse uma ponte da milonga ao samba via bossa – olhando o tropicalismo do avesso, do outro lado da ponte.

Avesso presente no apelido que colou na cidade: Satolep (Cosac Naify, 2008), título de seu segundo romance, já presente no primeiro, Pequod (Artes e Ofícios, 1995), e em uma canção de 1984. “Era uma brincadeira de adolescente, uma tentativa de criar uma cidade mítica, em que os tempos se sobrepõem, e acabou pegando. Hoje tem Bar Satolep, Padaria Satolep, Ótica Satolep“, ri. Esses tempos sobrepostos de modo fantasmagórico são a marca de seus dois livros.

Em Pequod, há a busca de um filho pelo pai. Na narrativa densa de Satolep, há um fotógrafo que volta à cidade após 30 anos, que se depara com um caderno onde há descrições de lugares de Pelotas: ele sai para clicar a cidade e quando volta para casa, lê no caderno a descrição exata do que fotografou, quase como um oráculo. Atento ao passado, Ramil narra encontros do fotógrafo com o escritor Simão Lopes Neto, autor de Contos Gauchescos e Lendas do Sul.

Nesse livro aparece mais claramente sua vocação meio para o relato mítico, o que o aproxima de outros descendentes de árabes no Brasil como Raduan Nassar e Milton Hatoum“, aponta Fischer. Em seu mais recente disco, Délibáb, o compositor radicalizou no diálogo sul-sul ao musicar poemas do quase desconhecido autor João da Cunha Vargas e milongas de Jorge Luis Borges. “Ele nunca teve medo de experimentar no pop ou de chafurdar nas formas tradicionais – especialmente a milonga, que não tinha prestígio culto nem aqui nem nos países do Prata“, lembra Fischer. “Em Buenos Aires, falam que um brasileiro revitalizou a milonga – algo como um argentino revitalizar o partido alto.

Café Aquários, ícone pelotense

Café Aquários, ícone pelotense

A penúltima rua antes do fim do mundo

A “geometrizada” obra de Ramil parece caminhar para estabilizar-se em um tempo mítico, fora do tempo efêmero do pop. Contudo, a impressão é esfacelada pouco antes do jantar regado a absinto – para o qual Ramil vai buscar Odyr e Angélica. Ambos estão na casa de Odyr, região remota da cidade próxima ao porto – Odyr diz morar “na penúltima rua antes do fim do mundo” – finalizando os últimos detalhes do romance gráfico Guadalupe, a ser lançado em outubro pela Companhia das Letras.

O magérrimo Odyr, semioculto sob lentes grossas e longos cabelos encaracolados, traz ao jantar um cheiroso pão redondo que ele mesmo fez, em seu forninho (“Um homem deve ser capaz de produzir o próprio pão“, sentencia). Angie traz sua notoriamente enigmática timidez. A centenária casa onde mora Ramil, numa rua barulhenta – pela janela vinham os gritos dos torcedores que peregrinavam para prestigiar o clássico do futebol local, Brasil X Pelotas –, foi adquirida e reformada pelo pai, um engenheiro civil uruguaio. Os filhos, Isabel, artista plástica, e Ian, também músico, vivem em Porto Alegre; como Kleiton e Kledir se fixaram no Rio, sobrou para Vitor assumir a casa familiar, onde vive com a mulher, a fonoaudióloga e pesquisadora Ana Ruth Ramil.

A casa conserva as paredes revestidas de escaiola – técnica que imita o mármore e a madeira – e os azulejos hidráulicos do início do século 20. Na sala de estar, onde havia um piano Fritz Dobbert e dois relógios parados, Ramil serviu um absinto que havia trazido de recente viagem à França, à moda do século 19: a água com cubos de açúcar misturada lentamente com a bebida, de modo a deixar “escapar” a verde fada do absinto.

E a fada flanou por sobre sete músicas do próximo disco de Ramil, a sair em 2013 – todas as canções são baseadas nos poemas de Rilke Shake, de Angélica Freitas (Cosac Naify, 2007, esgotado). Musicalmente, são, numa definição apressada (e talvez temperada pelo absinto), blues-bossa-milongas. O forte acento pop, de ressonância robertocarliana, é reforçado pelas letras de Angie, centradas em brincadeiras com o cânone literário e olho fino para as contradições do amor, sem falar no erotismo desavergonhado – em recente troca de cartas com o poeta Fabrício Corsaletti, no Blog do Instituto Moreira Salles, Angie reclamava: “Há uma pergunta dando voltas em rollers na minha cabeça, e ela veste collant de oncinha e não quer calar: fode-se pouco na poesia brasileira contemporânea, você não acha?“. Difícil crer naquela mocinha tímida em ver seus versos musicados por Ramil uma poeta tão despudorada.

Um útero é do tamanho de um punho

Fui o responsável pela triangulação entre Vitor e Angélica“, conta o crítico e editor Augusto Massi. “Considero que o trabalho dele como romancista transcende todas as questões levantadas pelo libreto-manifesto da Estética do Frio. O Vitor é um cara dotado de uma prosa belíssima, com um projeto bastante pessoal de ficção, de longo alcance. Trata-se de uma mistura rara, alta voltagem de inteligência e boa dose de melancolia. Já o músico Vitor é mais alegre e irônico. Talvez tenha vindo daí a afinidade dele com a Angélica“, acrescenta Massi, ex-editor de Vitor e Angélica na Cosac Naify e hoje professor de literatura na USP.

Depois da dica de Massi, Ramil musicou “Vida aérea” e pediu o contato da poeta – mal sabia que ela vivia na mesma cidade que ele. Angélica tomou um susto: Ramil era um mito de Pelotas, não parecia possível uma aproximação. “Foi difícil acreditar que era o Vitor no telefone, falando que tinha musicado um poema meu, com aquela voz lá dele“, lembra.

Angie é um mistério. Ao contrário dos falantes Vitor e Odyr, tem alguma dificuldade de sair do casulo – fala para baixo, com a mão quase em frente à boca, encurvada, quase como se olhasse para dentro de si mesma; guarda um ar de criançona grande que fica lá no fundo da classe espiando as travessuras dos outros. Mas, ao contrário dos caseiros Vitor e Odyr, ela é a mais viajante. Para ler seus poemas, foi a Equador, Alemanha, Holanda, México, Argentina e várias cidades do Brasil.

Praia do Laranjal, habitat de Angie

Praia do Laranjal, habitat de Angie

Vou sempre que me chamam. Mas, pra morar, prefiro Pelotas. Em São Paulo me dei conta de que estava trabalhando só pra me bancar; aqui a vida é mais barata e melhor.” Nos seus poemas este misto de timidez e fome de mundo se reflete no contraste entre humor e contenção. Para o poeta e editor argentino Anibal Cristobo (Krakatoa, 2001), a graça de sua obra está em desarticular o estereótipo do “brasileiro”. “Desconstruindo feminilidade, clima e a exuberância, Angélica está no outro extremo do Rio 40 Graus. Este olhar não ultrapassaria a esfera política se não se tratassem de poemas estupendamente realizados, com um tipo de humor lento – outra característica derivada do frio – que lhe tem valido um reconhecimento não só no Brasil como em vários países“, pensa o poeta e editor.

Até em Pelotas Angie é meio nômade. Vaga entre a casa da mãe na cidade e a casa da irmã, no bairro do Laranjal, vasta praia de areias finas e brancas e águas silenciosas da Lagoa dos Patos onde passou uma temporada para escrever Um Útero. Começou a ler poesia aos 10 anos, sob o impacto do poema “Bicho”, de Manuel Bandeira. Hoje seus poemas favoritos são as letras das canções da roqueira pernambucana Karina Buhr. Jornalista, foi repórter de Cidades n’O Estado de S.Paulo, onde achou muitas histórias para transformar em poemas – mas se encontrou mesmo como tradutora: atualmente traduz livros de Cesar Aira (update: o livro, Como Me Tornei Freira, sai este mês pela Rocco).

Sua poesia, vertida ao alemão, inglês, espanhol, francês, romeno e sueco, é sofisticada e repleta de referências, mas de comunicabilidade imediata, e longe de ser hermética. Um de seus procedimentos habituais é o diálogo com mestres e inventores sem porém colocá-los num pedestal. Nesse liquidificador de conteúdos, Rilke pode ser matéria de milk shake, William Blake pode ser uma torrada (“Rilke shake“), Ezra Pound vai parar numa jaula (“Não consigo ler os cantos“), Mallarmé vira uma arma perigosa (“Estatuto do desmallarmento“), Gertrude Stein entra na banheira (“Gertrude Stein daqui pra/ cá é você o paninho de lavar/ atrás da orelha é todo seu daqui pra cá sou eu o patinho/ de borracha é meu e assim ficamos satisfeitas“) e até Homero é tratado sem frescura (“Se quiser empreender viagem a ítaca/ ligue antes/ porque parece que tudo em ítaca/ está lotado“).

Se sua musicalidade parece espontânea, é um tanto assombroso saber que os poemas saem quase “naturalmente”, sem muito retrabalho. “Escrevi ‘Rilke shake’ direto, quase não mexi. Meus poemas são assim, eu tenho uma ideia, começo a escrever e de repente paro“, jura Angélica, enquanto se serve de um pouco mais de bacalhau e batatas cozinhados caprichosamente por Ana Ruth.

Mesmo os poemas mais trabalhados quase artificiosos de Angie são espontâneos e até com certa aparência de malfeitos – como as séries “3 poemas com o auxílio do Google“, em que o automatismo da ferramenta autocompletar traz resultados contraditórios, que embutem o cômico e o melancólico na edição da poeta. “Se em alguns poemas seus encontramos ecos do modernismo de Oswald de Andrade, em seus melhores momentos ela lembra poetas do século XIX como Sapateiro Silva e Qorpo-Santo, e também na poesia satírica e nonsense de Edward Lear, Christian Morgenstern, Paul Scheerbart“, compara o poeta Ricardo Domeneck.

É uma poesia que combina o lírico e o satírico de forma bastante sofisticada, baseando-se muitas vezes na tática da self-depreciation. Vale lembrar que Angélica é precursora no Brasil da ‘googlagem‘, que renova e se tornou o carro-chefe da poesia flarfista, surgida na última década nos Estados Unidos. Rilke shake talvez tenha sido o livro poesia contemporânea mais lido no Brasil ultimamente. Já disseram que vendeu pois é acessível, como se fosse pecado: ridículo insistir no mito romântico da poesia “difícil”“, dispara o poeta.

Guadalupe

Odyr mima Guadalupe

Odyr mima Guadalupe

A terceira ponta do tridente gelado, Odyr, é em tudo o oposto de Angie. Daqueles caras muito solitários que, quando começam a falar, desembestam, o grisalho e cabeludo Odyr voltou a Pelotas para dedicar-se totalmente aos quadrinhos. No Rio, foi diretor de arte da Desiderata, responsável pela reedição de clássicos do Pasquim, Millôr Fernandes, Jaguar, Ziraldo. Mas o Rio o transtornava, não se concentrava nas próprias histórias – a não ser a perturbadora graphic novel Copacabana, com roteiro de Lobo Barba Negra. “Só mesmo o Odyr para mostrar a princesinha do mar de modo cru, hard, sem filtro, noir, em PB. Nem as meninas da Prado Júnior escaparam, incólumes, do banho de nanquim do desenhista“, escreveu Telio Navega, n’O Globo.

Mas, apesar das dezenas de projetos, a arte de Odyr não tinha foco. Em Pelotas, encontrou condições ideais. “Acordo cedo, faço meu pão, resolvo meus frilas de design gráfico até a tarde. Daí almoço e depois fico trabalhando em quadrinhos até umas 10 da noite. No meio tempo, navego na internet e baixo filmes. Mas não consigo ver nada mais do que meia hora. Não saio de casa quase nunca. Aliás, os índios que moravam aqui antes da chegada dos ibéricos já eram assim: no frio, pra se aquecer se enterravam em buracos no pampa“, conta o hiperativo quadrinista, acendendo mais um cigarro.

Namoradas? Já foi casado, mas hoje é um feliz misantropo. Vida noturna? Esqueça. Piqueniques aos fim de semana? Necas. Amigos passando pra tomar um café? “Quando estávamos terminando Guadalupe, de vez em quando eu percebia que o Odyr já tinha ausentado, começado a trabalhar em outra coisa… aí sacava que era hora de ir embora“, ri Angie. “Quando Odyr saiu do Rio entendi que ele era um artista do frio, que tem momentos de clausura, obcecado com a arte. O trabalho dele melhorou significativamente com esse rigor a que ele se impõe“, elogia Eduardo Nasi, jornalista especializado em quadrinhos. Ele lembra a busca de Odyr por um traço que reflita o próprio processo de composição. “O trabalho dele tem essa pegada de artesanato, de fazer manual, com a entrega do artista à obra. Em Guadalupe, seu lápis deixou sulcos indeléveis nas páginas: as marcas fazem parte do trabalho“, explica.

Odyr também é um raro cartunistas eminemente “literários” – nos fanzines que ele mesmo edita pela Editora Secreta, há adaptações de Borges, Cortázar, Júlio Verne, e suas histórias entrelaçam reflexões metalinguísticas sobre a natureza do narrável – como nas séries A máquina narrativa e Viagem ao centro dos 2000 eus. Embora condene algumas adaptações recentes de clássicos da literatura por serem, a seu ver, muito “literais e pouco ambiciosas“, ele mesmo está numa empreitada gigante: adaptar aos quadrinhos a vida e a obra de Qorpo Santo.

Detalhe do Qorpo Santo de Odyr

Detalhe do Qorpo Santo de Odyr

Um dos mais peculiares autores gaúchos do século 19, tido como esquizofrênico em vida, escrevia obsessivamente: chegou a produzir oito peças de teatro em um mês. Precursor do absurdo e do surrealismo no Brasil, tem uma obra ainda por ser desvendada. No longo projeto de Odyr, sua vida abre clareiras por onde entram trechos de suas peças. Ele deseja ansiosamente terminar logo: não gosta de permanecer anos amarrado a um projeto, como muitos quadrinistas. “Precisamos ter uma indústria de quadrinhos como na França, em que o sujeito escreve um livro por semestre, e vende milhares nas bancas.” Daí sua busca por um traço que fosse ao mesmo tempo muito elaborado e também quase tosco – no nível do gesto.

As 120 páginas de Guadalupe, que desenhou em somente três meses, provam essa procura. A história de Angie se passa no México – inspirada em uma viagem da poeta, quando ela encontrou o argumento: uma filha que precisava atravessar o país para enterrar a avó. “Às vésperas de completar 30 anos, tudo o que Guadalupe Vega quer é esquecer o trabalho que tem no sebo de Minerva, seu tio travesti. No meio do pior engarrafamento do ano (ela aproveita os engarrafamentos para ler os clássicos), fica sabendo que a a avó, Milagros, morreu ao chocar sua scooter com um tacomóvel. Como Guadalupe tem o furgão de Minerva Livros, é a única que pode cumprir o último desejo da avó: um enterro com banda de música em Oaxaca, onde nasceu.” Assim começava a sinopse que Angie mostrou a Odyr.

Depois entraram cogumelos alucinógenos rituais, deuses histéricos, comédia ligeira e o Village People“, conta ele, que foi convidado pelo escritor Joca Reiners Terron – responsável pelos “casamentos” entre desenhistas e escritores na série de romances gráficos a sair pela Companhia das Letras – para passar o lápis no roteiro da vizinha. “Meus originais contam a história do processo tortuoso que foi chegar àquelas imagens. Por isso o México de Guadalupe é bem flexível, um cenário leve para uma história imaginativa, um México pessoal, meio pesquisado, meio inventado e atravessado por coisas que vi ao longo do tempo“, reflete o artista.

Após lançar sua segunda graphic novel, Odyr pretende detonar outra empreitada: o Salão de Humor de Pelotas. “De cara é uma ideia engraçada, que atrai simpatia. Minha vontade é mostrar que a cidade é uma encruzilhada das artes gráficas brasileiras e platinas“, sonha, pouco antes de revelar mais três ou quatro projetos que tem nas mangas. Jantar finalizado, Vitor Ramil distribui pastéis de Santa Clara, especialidade pelotense, e deixa perto um pote de doce de leite uruguaio, numa simbólica menção ao diálogo sul–sul. A consistência e o sabor dos doces têm a temperatura exata.

Angélica, Odyr e Vitor

Angélica, Odyr e Vitor


Poesia Ilimitada

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Changuito à frente de seu ídolo Cesariny

Changuito, Dostoiévski, Cesariny


No Rio de Janeiro, um português abriu a única livraria especializada em poesia do país: conheça Changuito, o intrépido livreiro que não diz uma frase sem citar um poeta. Perfil para a revista Continente

Poucos sabem, mas Dom Quixote vive em uma sala ensolarada em um prédio feioso da Lapa carioca. Sim, aquele mesmo: o cavaleiro andante, que lutava com moinhos de vento na península ibérica, hoje batalha contra outros inimigos, tão poderosos quanto invisíveis — os leitores. Changuito, nome de guerra do lisboeta Mário Guerra, idade entre 20 e 40 anos (“Livreiro nunca declina a idade“, diz), é o dono da quixotesca livraria Poesia Incompleta. Quixotesca por muitas razões. Primeiro: é a única livraria especializada em poesia no Brasil — algo já raro em termos mundiais (Changuito ouviu dizer que só há congêneres em Paris, Seattle, Boston e Oslo). Em plena crise do livro, um negócio altamente arriscado. Segundo: por razões legais, Changuito não pode divulgar o endereço da livraria; no Rio, é proibido “estocar” livros acima do quarto andar de um prédio comercial. O livreiro só descobriu essa lei bizarra quando foi abrir o negócio na prefeitura — e já havia instalado na sala uma tonelada de ditirambos, sonetos, epopeias e versos livres: cinco mil volumes, em cerca de trinta idiomas diferentes.

O clandestino espaço é um terço da livraria que Changuito tinha em Lisboa, onde suas três salas com livros em 50 línguas funcionaram durante três anos — e, pasmem os que o taxam de cabeça-de-vento, com lucro anual de 20%. “Não se abre um negócio desses sem relação de amor com a poesia“, ensina, tossindo bastante enquanto acende o cachimbo (fumava quatro maços por dia, agora baixou para um). Faz quarenta graus lá fora e aqui dentro o refresco vem puramente da janela, da cerveja oferecida pela namorada do livreiro e da trilha sonora, o flutuante piano do português Bernardo Sassetti. “A primeira coisa que me moveu para abrir a livraria foi a relação de intimidade com o leitor, que não acontece nessas megasuperlivrarias. Ali o capitalismo é malfeito: estão a perder clientes de livros para CDs, computadores, filmes; podes ver pelo fechamento da Barnes & Noble. Creio na clivagem dos produtos de nicho: o tipo que adora ciências sociais vai em livraria só de livros de ciências sociais encontrar leitores de ciências sociais; um lugar onde tratam o leitor por tu“, explica o anarcocapitalista.

Mas enfim, se fazia sucesso em Portugal, para que aventurar-se no Rio? “Estou aqui há três meses e tem sido relativamente catastrófico“, troça. De novo, o amor justifica o movimento do livreiro: ele se apaixonou pela bela poeta carioca Valeska de Aguirre (Atos de Repetição, 7Letras). Não só o amor, também a guerra. “Respira-se mal em Portugal; há gente assustadora no poder, analfabeta, tiriricas de fato e gravata com discurso neoliberalista que nem conjugar verbos sabem“, vitupera. No batismo da livraria, ficou entre homenagear Poesia Toda, antologia de seu ídolo Herberto Helder, e Poesia Incompleta, livro do também português Mario Dionisio: “Me pareceu mais justo, porque por mais que se tenha de tudo, sempre falta algo“, lamenta. Coisa que o deixa “irritadíssimo“, termo recorrente. Daí sua frustração em não poder divulgar o endereço da livraria: editoras e distribuidoras brasileiras desconfiam e não lhe entregam os livros pedidos. Portanto, por enquanto seu faturamento é, como o nome sugere, incompleto.

Apesar de haver poucos livros brasileiros, há tesouros para onde se olhe nas abarrotadíssimas estantes — um catálogo finamente selecionado, tentações por todo lado. Há que se lembrar ao leitor que qualquer compra assusta: como são livros europeus, os preços estão em euro. No entanto, não existe lugar no país onde se possa passar a tarde toda folheando exemplares de selos e editoras raros do mundo todo tendo a fazer-lhes as honras um cultíssimo leitor. Antes de ser livreiro, que fazia o magro barbudinho? “Era gerente de um bar onde havia concertos, ou seja, comprava tomate, queijo, servia bebidas e programava os shows“, diz. E estudou o quê? “Estudei tráfico de escravos na Abissínia, estudei trapézio, estudei história científica do século 15, estudei todas as matérias que não valem para nada, e além disso os poemas de Manoel de Barros“, conta.

Tentei fazer faculdades de animação sócio-cultural e jornalismo e, assustadíssimo com o baixo nível, depois de sete meses saí“, diz, falando pausada e apaixonadamente, quase sempre citando versos. Seus heróis são Herberto Helder, Mário Cesariny, Camões, Cesário Verde, Camilo Pessanha… E Pessoa? “Estão a editar tanta porcaria de Pessoa que acho difícil dizer que gosto dele. Os argumentos de cinema, os textos sobre monarquia? Claro que ele é grande, mas estão a fazer render demais o peixe, o baú dele é uma sangria“, critica. Entre os brasileiros, Changuito elege as Galáxias, de Haroldo de Campos, Drummond, Bandeira, e, acima de todos, João Cabral, “o primeiro poeta brasileiro que ouvi; fiquei absolutamente doido com aquilo“. Dos contemporâneos, elogia os romances Eram Muitos Cavalos, de Luiz Ruffato, Pornopopéia, de Reinaldo Moreaes, e Ó, de Nuno Ramos.

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Quem se acha, vive se perdendo

E poesia contemporânea? Aí Changuito prefere silenciar para não polemizar. Conta, meio desgostoso, que em Portugal os poetas que não elogiava deixavam de ir à livraria; no Brasil, somente teve a visita de Paulo Henriques Britto. Será que os poetas frequentam mais saraus que livrarias? À provocação, o magriça atiça-se. “‘Onde a poesia se exibe como um espetáculo espetacular, não é poesia’, diz um poema de Ramos Rosa. Ouvi muita poesia dita por poetas e atores. Engraçado: no quinto verso vê-se os cinco livros que o tipo leu. Estamos em 2013 e estão a querer fazer o que o Ginsberg fez há 60 anos? Tu não és o Ginsberg, poxa, que leu os russos, os irlandeses, os franceses… aquilo não veio de nada. É muito raro um Rimbaud!“, tosse de novo, parecendo um poeta romântico do século 19.

Então para Changuito existe grande diferença entre escrever e publicar? “Há muitas pessoas se achando demais, tendo opiniões… quem acha, vive se perdendo, cantava o Noel Rosa. É como acontece na academia: fico chocado com o número de pessoas concluindo pós-doutorados. Mas o que alguém pode concluir sobre o que quer que seja?! Concluir é assustadoramente difícil. Li a grande poesia portuguesa do século 15 e não concluo porra nenhuma! ‘Umas vezes me espanto, outras me envergonho’, diria o Sá de Miranda. Acho que, na poesia contemporânea, estamos muito distanciados do espanto e não nos envergonhamos o suficiente“, trocadilha o livreiro.

Edita-se coisas demais? Como lidar com o dilúvio de informação? Navegar na rede é preciso? “Só uso o Facebook como plataforma de negócios. Nesse polvo das redes sociais, quando alguém põe um texto a rimar alma e calma e uma foto de pôr do sol, 17 imbecis fazem joinha… Não tenho tempo para isso, não acabei de ler o Dostoiévski“, justifica. Então é difícil tirar as pessoas da zona de conforto. “Claro: ninguém quer ler Marcial, Plutarco, Píndaro, Checov; ninguém vai te agarrar na rua e dizer ‘Leia Shakespeare!’. No Rio, especificamente, há um amontoado de razões para as pessoas não lerem poesia. Tu não queres ficar pra baixo, refletindo, indispondo-se com a praia, não é?

Para Changuito, ler deve ser um exercício singular. “Entro na Livraria Cultura e fico entontecido com as escadas rolantes, as luzes, o espaço… parece que o livro é só mais uma coisa. Vivemos uma época de possibilidades. Há 750 mil apps para iPhone, pode-se comprar viagens instantâneas na rede, ver todos os filmes, ouvir os melhores textos em audiolivros ditos pelos melhores atores. Mas compra-se, e não se lê. Lembrando Szymborska, ‘Alguns gostam de poesia/ alguns, quer dizer, dois em mil’. As pessoas gostam é das possibilidades: de ter milhares de coisas que jamais terão tempo físico para usar; da hipótese de gelados com 80 sabores, mas nos próximos 20 anos vão provar o único sabor que de já gostavam antes. As pessoas nunca saem da zona de conforto para a zona de confronto“, discursa, desculpando-se por mais uma tossidela.

Por esta razão é que o livreiro, ao buscar um lugar definitivo para a Poesia Incompleta — com dificuldade, por conta dos altíssimos preços de aluguéis no Rio —, evita associar-se a bar ou restaurante. “As pessoas vão com as mãos molhadas pegar num livro, e cada exemplar que se inutiliza se joga fora. Quando as pessoas veem 50 exemplares da biografia de Giannecchini ou do Padre Marcelo ou da Jane Fonda, acham que, se este caiu, há outro, tudo bem. Só exponho um único exemplar de cada livro; em geral não tenho outros“, explica.

Mas Changuito: apesar de suas diatribes contra a falta de leitura geral, nunca se publicou tanto livro como hoje. Compra-se muito e lê-se pouco, então? Livro virou fetiche? “No dizer de Mario Cesariny, ‘há tanta maneira de compor uma estante’… Vi uma arquiteta paga para desenhar uma casa receber pra comprar livros, pois os donos não tinham. Gosta-se muito de acumular, ter muitas coisas, mostrar a casa cheia de quadros. É coisa de dentistas, médicos, mostrar diplomas, quadros; gente que nunca foi a museus — mas têm na mesa a Caras. A bibliofilia é só um desejo de colecionar: por acaso é livro, não é sapato, automóvel. Comprei muitas primeiras edições, mas isso nunca foi desligado do meu amor àquela obra“, desenvolve, que aproveita para lembrar: não escreve, nem nunca escreverá poemas. “Sou acima de tudo, ou abaixo de tudo, um leitor“, brinca.

E afinal, Changuito, poesia é mesmo uma coisa inútil? “Discordo totalmente“, tosse, acendendo de novo o cachimbo. “Como é o ponto mais alto da palavra, a poesia pode formar sujeitos mais preparados, que percebam o seu lugar e o do outro no mundo, que aprendam a falar de si, do outro. Não se pode fazer nada grande sem muita leitura. Por isso nunca senti necessidade de escrever. Só valeria a pena se fosse Camões ou Haroldo. Já se disse tanta coisa sobre tudo, que vou dizer?” E fim de papo. Quer dizer: antes, Changuito oferece mais cerveja e mostra mais quitutes de sua coleção. O repórter sai informado, porém mais suado, trôpego e pobre do que quando entrou. É um perigo esse Dom Quixote lusitano.


K. Dick, Mallo, mãe, Cercas

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Tanta coisa pra ler que não sabe por onde começar? O velho Bressa te ajuda nessa. De hoje em diante, toda semana o seu querido Impostor traz notas curtas sobre lançamentos recentes ou nem tão recentes assim. Livros que resenhei para o Guia da Folha Livros Discos Filmes, para a revista Poder, onde titulo a coluna Cultura Inc., para outros veículos — ou para este blog mesmo. Fiquem com as seguintes dicas, por ora. E porra, LEIAM; livro não é só pra enfeitar a mesinha de centro da sala, cazzo.

 

Capa fodona do Pedro Inoue para a coleção K Dick da Aleph

Capa fodona do Pedro Inoue para a coleção K. Dick da Aleph

FAMA X ANONIMATO

> Fluam Minhas Lágrimas, Disse o Policial (trad. Ludimila Hashimoto). Aleph, 255 págs.

Imagine que você é a Oprah Winfrey, o David Letterman, ou, vá lá, o Luciano Huck, e, de um dia para o outro ninguém te conhece, sua passagem nunca foi antes sentida sobre a Terra. Sobre esta premissa, Philip K. Dick constrói uma trama falando de sociedade de consumo, mídia, filosofia, alteradores de consciência — e a natureza mutante da realidade. O livro foi escrito em 1974, bem antes do culto global às supercelebridades, bem antes de qualquer zé-ruela ser famoso-só-porque-é-famoso. Mas fama e anonimato são apenas estados alucinatórios para K. Dick, que já nos anos 60 havia previsto essa nossa triste “sociedade dos figurantes” — segundo o pós-debordiano conceito de Agustín Mallo — e a trata com acidez e lucidez habituais neste que é um de seus livros mais sarcásticos. Como todo grande escritor de ficção-científica, passado o estranhamento com a terminologia futurista (suave, em K. Dick), e com a louca vida de Jason Taverner, astro internacional de TV, aos poucos nota-se que o futuro, infelizmente, já chegou.

Bela capa da Milena Galli

Bela capa da Milena Galli

BELEZA TERRÍVEL

Nocilla Dream, de Agustín Fernández Malo (trad. Joana Angélica d’Ávila Melo). Cia. das Letras, 211 páginas

 Lautréamont, em seus Cantos de Maldoror, elogiava a “beleza convulsiva” surgida do “encontro fortuito entre um guarda-chuva e uma máquina de costura sobre uma mesa de dissecação“. Em seu romance, Mallo diz ter se inspirado no encontro fortuito entre a leitura de uma reportagem sobre a estrada mais solitária dos EUA e o verso de YeatsTudo mudou, mudou por completo/ uma beleza terrível nasceu” impresso em um sachê de açúcar de um restaurante, lidos no momento em que ouvia a canção “Nocilla, qué merendilla“, da banda punk Siniestro Total. Mais para hiper-realismo que para surrealismo, Nocilla Dream consiste de 113 capítulos, vários sampleados da obra de cientistas, escritores, ensaístas, jornalistas, em um achocolatado de narrativas que vão formando o que Mallo chama de “docuficção” — “uma vez que extraídos dessa ‘ficção coletiva’ que chamamos de ‘realidade’” e também “da ‘ficção pessoal’ que denominamos ‘imaginação’“. Um livro aberto para qualquer direção — como os desertos, onipresentes na trama.
mãe apaixonou-se pelo trabalho de Nino Cais e lhe pediu uma capa

O portuga mãe apaixonou-se pelo trabalho de Nino Cais e chorou até ganhar essa bela capa

MULHERES-A-DIAS

> o apocalipse dos trabalhadores, de valter hugo mãe. Cosac Naify, 185 págs.

Com a PEC das Empregadas o Brasil se deu conta de que ainda funciona na idade média — pelo menos foi o que as bizarras discussões surgidas com a consolidação da lei nos fazem crer. De nossa pátria-mãe, surge um livro para iluminar o outro lado da moeda. Nos rincões de Portugal, uma “mulher-a-dias” sofre um casamento tedioso com um sujeito bronco — e sua agonia aumenta porque o setentão dono da casa em que trabalha abusa sexualmente dela; para piorar, maria (grafa assim, caixa baixa) apaixona-se. Já sua confidente, a amiga quitéria, fatura trocados chorando as pitangas em enterros, e quebra a infelicidade namorando ucranianos emigrados. Sempre em minúsculas, o autor nos apresenta de modo engenhoso o pequeno mundo dessas mulherinhas, construindo o lirismo através de cenas, diálogos e pensamentos mínimos, recusando a pieguice e a adjetivação fácil; das franjas da sociedade portuguesa se revela o mundo contemporâneo — especialmente a mesquinhez dos poderosos e a capacidade de redenção dos humildes.

Foto do grande Howard Sochurek para uma capa de design convencional

Foto do grande Howard Sochurek para uma capa de design convencional

VIETNÃ ESPANHOL

>  A Velocidade da Luz, de Javier Cercas (trad. Sérgio Molina), Biblioteca Azul, 248 págs. 

Não é fácil casar a metaficção — aquela em que a própria literatura se torna tema e protagonista da trama — com uma narração concreta e descritiva, e ainda por cima permeada de reflexão esvaziada de retórica ou pompa, tudo isso partindo de referências autobiográficas… Terreno onde muitos autores contemporâneos têm derrapado, ou por excesso de cabotinismo, ou por levar-se a sério demais; ou por mera chatice. Não é o caso deste romance do espanhol Cercas, que narra a amizade, na universidade de uma cidadezinha norte-americana, entre um catalão professor de literatura hispânica com outro professor de espanhol — porém norte-americano, e ex-combatente do Vietnã. O catalão vai catar na história do outro um material para um romance — e o processo desta escrita é desvendado em uma escrita deliciosamente ágil por Cercas, que redigiu o livro para curar-se do sucesso avassalador de seu Soldados de Salamina.

 


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